O Paraná ensinado às crianças: narrativas eurocêntricas e raciais em livros didáticos regionais paranaenses (1903-1996)
Paulo Eduardo Dias de Mello*
Universidade Estadual de Ponta Grossa
paulodemello@uepg.br
https://orcid.org/0000-0002-6031-3987
Resumo
Este artigo examina como as autoridades políticas e educacionais do Paraná, um estado no sul do Brasil, apoiaram a produção de manuais didáticos regionais. Esses livros contribuíram para a invenção e difusão do ideário do "Paraná europeu" —uma narrativa historiográfica que defendia que fatores geográficos, etnográficos e culturais tornaram o Paraná um "estado europeu" e "branco", distinto de outras regiões brasileiras, construído sobre um "território vazio"—. Essa construção discursiva, que romantiza a colonização europeia e minimiza a presença indígena e negra, perpetuou-se por quase um século, moldando a percepção do Paraná veiculada nos livros didáticos. Alteridades não-europeias são estereotipadas, ocultadas ou minimizadas. Analisamos um conjunto de manuais didáticos, apoiados por autoridades e distribuídos nas escolas oficiais: O Paraná e o Brasil (1903), de Sebastião Paraná; Pequena história do Paraná (1953), de Cecília Westphalen; A Abelhinha estuda história do Paraná (1969), de Renée Swain, e Histórias do cotidiano paranaense (1996), de Maria Auxiliadora Schmidt. Investigamos as relações entre a operação historiográfica, o campo político, intelectual e educacional, e como os sujeitos históricos (europeus, indígenas, negros) são representados. A análise evidencia diferentes estágios e propósitos na escrita da história, revelando ambiguidades, contradições, e permanências na representação de um Paraná forjado como europeu.
Palavras-chave
História do Paraná, livro didático, eurocentrismo, racismo, estereótipos.
El Paraná enseñado a los niños: narrativas eurocéntricas y raciales en los libros de texto regionales de Paraná (1903-1996)
Resumen
Este artículo examina cómo las autoridades políticas y educativas de Paraná, un estado al sur de Brasil, respaldaron la producción de manuales didácticos regionales. Estos libros contribuyeron a la invención y difusión del ideario del "Paraná europeo" —una narrativa historiográfica que defendía que factores geográficos, etnográficos y culturales convirtieron a Paraná en un "estado europeo" y "blanco", distinto de otras regiones brasileñas y edificado sobre un "territorio vacío"—. Esta construcción discursiva, que romantiza la colonización europea y minimiza la presencia indígena y negra, se perpetuó durante casi un siglo, configurando la percepción de Paraná vehiculada en los libros de texto. Las alteridades no europeas son estereotipadas, ocultadas o minimizadas. Se analiza un conjunto de manuales didácticos, apoyados por autoridades y distribuidos en escuelas oficiales: O Paraná e o Brasil (1903), de Sebastião Paraná; Pequena história do Paraná (1953), de Cecília Westphalen; A Abelhinha estuda história do Paraná (1969), de Renée Swain, e Histórias do cotidiano paranaense (1996), de Maria Auxiliadora Schmidt. Se investigan las relaciones entre la operación historiográfica, el ámbito político, intelectual y educativo, y cómo son representados los sujetos históricos (europeos, indígenas, negros). El análisis evidencia diferentes etapas y propósitos en la escritura de la historia, revelando ambigüedades, contradicciones y permanencias en la representación de un Paraná forjado como europeo.
Palabras clave
Historia de Paraná, libro de texto, eurocentrismo, racismo, estereotipos.
Paraná taught to children: Eurocentric and racial narratives in regional textbooks from Paraná (1903-1996)
Abstract
This article examines how the political and educational authorities of Paraná, a state in southern Brazil, supported the production of regional textbooks. These books contributed to the invention and dissemination of the "European Paraná" ideology —a historiographical narrative that argued geographical, ethnographic, and cultural factors rendered Paraná a "European" and "white" state, distinct from other Brazilian regions, and constructed upon a "vacant territory." This discursive construction, which romanticizes European colonization and minimizes indigenous and black presence, persisted for nearly a century, shaping the perception of Paraná as conveyed in textbooks. Non-European alterities are stereotyped, concealed, or minimized. We analyze a set of textbooks, supported by authorities and distributed in official schools: O Paraná e o Brasil (1903), by Sebastião Paraná; Pequena história do Paraná (1953), by Cecília Westphalen; A Abelhinha estuda história do Paraná (1969), by Renée Swain, and Histórias do cotidiano paranaense (1996), by Maria Auxiliadora Schmidt. We investigate the relationships among the historiographical operation, the political, intellectual, and educational fields, and how historical subjects (Europeans, indigenous peoples, black individuals) are represented. The analysis reveals different stages and purposes in historical writing, uncovering ambiguities, contradictions, and continuities in the representation of a Paraná forged as European.
Keywords
History of Paraná, textbook, eurocentrism, racism, stereotypes.
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, o Brasil assistiu a um avanço nas pesquisas sobre literatura didática ou escolar. A elaboração de balanços no campo da pesquisa sobre livros didáticos realizados por Bittencourt (1993, 2011), Munakata (1997, 2003) e Silva (2018) indicam que os manuais escolares tem sido uma importante fonte para estudos históricos sobre temas da história das disciplinas escolares, do currículo, além de investigações específicas sobre o mundo editorial e a história das produções escolares. Nestes estudos prevalece atualmente a concepção do livro didático como objeto complexo de múltiplas dimensões e funções, seja como mercadoria do mundo editorial (sujeito à dinâmica de produção, circulação e consumo); objeto ligado à cultura escolar que lhe dá sentido e legitimidade (disciplinas escolares, currículos e práticas institucionais); e como poderoso veículo para a disseminação de ideologias.
Como ponto de corte desse campo de pesquisa, estudos sobre a produção didática da disciplina escolar de História constituíram terreno fértil para discussões sobre as relações entre a disciplina acadêmica da História e o conhecimento histórico escolar; entre as articulações dos discursos ideológicos, projetos de sociedade e o processo de escolarização. Nesse sentido, a compreensão da própria constituição da história como disciplina escolar e seu papel no currículo de formação de crianças e jovens atraiu a atenção de diversos historiadores da disciplina. Em geral, podemos dizer que esses estudos apontam para o fato de que a disciplina escolar da História tem, em suas raízes, uma ligação intrínseca com a ideia de produzir uma "genealogia da nação", contribuindo significativamente para legitimar a independência do Estado brasileiro e sua permanência histórica, bem como forjar coesão nacional. Sabe-se que, no campo do conhecimento histórico escolar, ao longo dos séculos XIX e XX, um movimento para o fortalecimento de uma formação escolar nacionalista e patriótica, cujas bases situam-se na sedimentação de uma história nacional como um passado homogêneo e livre de conflitos. Trata-se de uma história única a ser assimilada por todos os brasileiros, construída tanto pela historiografia "oficial" quanto pela historiografia didática. Para esses historiadores, os conflitos existentes no campo da interpretação histórica estavam relacionados a disputas entre o campo religioso e o secular. Ao longo do século XIX, o avanço da concepção da história positivista, baseada na ideia de progresso da civilização moderna e científica, finalmente removeu a história do campo de ação da providência divina, fazendo triunfar uma concepção secular da história. Nesta concepção predominou a atuação de homens ilustres e heróis na construção do Estado nacional, e a narrativa sobre eventos que traduziam os requisitos para sua entrada no concerto das "nações civilizadas".
É nesse concurso que se somam as discussões sobre a identidade do brasileiro, a chamada questão do "caráter nacional". Debates sobre a natureza da população brasileira e o fenômeno da miscigenação foram influenciados por teorias raciais, determinismos geográficos e proposições de eugenia e branqueamento populacional. Nesse contexto, o papel da história escolar como disciplina central da pedagogia cidadã teve o papel de reforçar a noção de genealogia da nação forjada em sua ascendência europeia, branca, eugênica. O ensino da história, instituído ao longo do período, não se restringiu à história nacional, mas também foi organizado por meio de conteúdos políticos específicos de caráter regional. Portanto, a definição dos conteúdos históricos a serem ensinados também serviu para a constituição de identidades locais e regionais, estabelecendo diálogos e confrontos com a identidade "nacional".
No Paraná, que se tornou província emancipada em 1853, a questão da identidade do paranaense logo se tornou um problema que atraiu a historiografia oficial e escolar. A lenta construção de um sistema de ensino local exigiu a produção de currículos escolares como parte do projeto de construção de identidade "regional". Foi assim que, no desenvolvimento do sistema educacional, especialmente da capital Curitiba, se deu produção de manuais de história dedicados à história do Paraná e destinados à escolarização básica. Após a Proclamação da República esse projeto ganhou força, influenciado pela expansão de espaços de circulação e produção intelectual e cultural. A expansão de editoras, estruturas escolares, bibliotecas, e livrarias acompanhou a organização de novos espaços de sociabilidade entre os alfabetizados, fomentando discussões sobre os rumos da nova “nação republicana”, a formação social do Brasil e a identidade regional (DeNipoti, 1998). A popularização do Movimento Paranista, movimento de construção identitária do Paraná que teve início na década de 1920 (Batistella, 2012), integrou e impulsionou esse processo.
O termo "paranista", neologismo criado pelo historiador, jornalista e político Romário Martins, foi cunhado "para designar aqueles que nutriram o amor pelo Paraná e estavam dispostos, por meio do discurso, a elogiá-lo e reconhecer nele um lugar onde a população teria as condições perfeitas para se desenvolver como civilização" (Iurkiv, 2002, p. 14). O paranismo foi, portanto, um movimento regionalista paranaense dedicado à produção de uma história e de uma sociedade local baseada em uma visão particular da sociedade e do próprio estado do Paraná. Nele a regionalidade não foi apresentada pela diluição ou justaposição no todo nacional, mas pela afirmação da diferença das comunidades imigrantes que formaram a sociedade local, em sua trajetória de transformação da sociedade luso-brasileira. O movimento paranista fundou a mitologia do Paraná como um estado "branco", resultado da colonização europeia, sem elementos negros ou portugueses. (Camargo, 2007, p. 42). A produção didática do início do século XX, foi utilizada para difundir uma história do Paraná, com o objetivo de moldar a percepção do espaço paranaense, sua formação social e relações de poder, a partir de temas e valores de identidade marcados pelo paranismo.
Para a análise da formulação e permanência desse discurso “paranista” tomamos como objeto um conjunto de manuais didáticos produzidos, em momentos históricos significativos, por intelectuais ligadas/os às estruturas de poder e de produção do conhecimento histórico escolar no Paraná. São eles: 1) O Brasil e o Paraná (1903), de Sebastião Paraná; 2) Pequena história do Paraná (1953), de Cecília Westphalen; 3) A Abelhinha estuda o Paraná: livro de leitura para o 3º ano primário (1969), de Enói Renée Navarro Swain, e 4) Histórias do cotidiano paranaense (1996), de Maria Auxiliadora S. Schmidt. Esses manuais foram selecionados porque sua produção foi apoiada e validada por autoridades do poder político e educacional paranaense, tendo sido distribuídos nas escolas da rede oficial de ensino. Em comum eles possuem o fato de difundirem através da escola a invenção do “Paraná europeu”, revelando um processo de longa duração, de quase um século, atuando na formação de diversas gerações escolares.
Na análise dos manuais didáticos selecionados buscamos identificar quem foram suas/seus autoras/es, e as relações entre a “operação historiográfica”, o campo político, intelectual e educacional, em cada momento de produção. Procuramos também entender como são representados nos textos didáticos os sujeitos/agentes históricos considerados responsáveis pela construção do estado do Paraná, destacando: os elementos europeus, os grupos indígenas e negros escravizados, além de identificar o papel atribuído a fatores como o clima e a terra. Para dimensionar ao leitor a longa permanência desta narrativa organizamos o texto em ordem cronológica, seguindo a sequência de publicação dos manuais didáticos citados.
O BRASIL E O PARANÁ, DE SEBASTIÃO PARANÁ (1903)
O livro didático O Brasil e o Paraná foi escrito por Sebastião Paraná, e publicado pela Empreza Grafhica Paranaense, em Curitiba (capital do estado) no ano de 1903, inaugurando as produções didáticas de História e Geografia do Paraná destinadas às escolas primárias. O momento de publicação do livro, o situa no contexto paranaense da chamada Primeira República Brasileira, proclamada em 15 de novembro de 1889. Por essa razão, o texto expressa tensões e posições do autor no contexto dessa transição política, ao mencionar, por exemplo, que a "República Federativa" foi proclamada e que o novo regime teve "distintos e devotados evangelizadores". Sebastião Paraná defende de modo explícito o novo regime no texto. Segundo ele, o novo sistema político
Avantaja-se a todas as fôrmas de governo, porque pela sua natureza e elasticidade do seu mecanismo, é a única que pôde em mais larga escala garantir ao povo o direito que lhe é atribuído e inalienável de exercer sua vontade na organização dos poderes públicos. (Paraná, 1903, p. 85)
O autor também destaca a importância da educação, para o processo político, afirmando que "ignorância e Republica são ideias que se repelem" (Paraná, 1903, p. 80). Mas, adverte que o Paraná não se destaca neste setor devido ao atraso da “instrução popular” e a forma desigual com que a educação se distribuía no território paranaense, defendendo que “facilitar o ensino a todas as classes da sociedade, amplia-lo, difundi-lo abastosamente até pelas paragens mais remotas do nosso vasto território deve ser a aspiração mais ardorosa dos que se interessam pelo progredimento paranaense, da Pátria, da humanidade” (Paraná, 1903, p. 116).
Sebastião Paraná possuía profundo envolvimento e reconhecimento no meio intelectual e acadêmico da época, que pode ser notado pela extensa lista de atributos de seu currículo apresentados na obra. O autor é apresentado como "Bacharel" e "Ex-lente catedrático de Geografia e Chorografia do Brasil do Ginásio Paranaense e da Escola Normal", indicando que ele era um membro ativo e correspondente de diversas instituições de destaque no campo da geografia, história e letras, tanto no Brasil quanto em Portugal e Argentina. Incluem-se entre elas: o Instituto Geográfico Argentino, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, e institutos históricos e geográficos de diversas capitais brasileiras, além da Sociedade de Geographia de Lisboa e do Rio de Janeiro. Ele também era "Socio efetivo do Centro de Letras do Paraná; da Academia de Letras do Paraná". Assim situado, o livro e seu autor são revestidos de legitimidade advindas do rol de atividades que realizava e instituições culturais que integrava.
Além disso, a obra foi adotada oficialmente, como revela o parecer da comissão de “lentes do Gynásio paranaense”[1] designada para sua avaliação. O parecer, apresentado, com destaque no livro, expressava o seguinte:
A comissão abaixo assinada (...) nomeada para dar parecer sobre o livro do Dr. Sebastião Paraná —O Brasil e o Paraná— escrito para USO DAS ESCOLAS PRIMÁRIAS, (sic) - tendo estudado convenientemente o trabalho do ilustre colega, entende que o referido livro preenche com brilho os fins a que se propôs o autor, devendo ser adotado nas escolas públicas do estado. (Paraná, 1903, p. 5)
Segundo a comissão, formada por importantes intelectuais[2] do período, o livro de Sebastião Paraná foi "escrito com amor pela terra natal" e visava realçar "não só a Pátria Brasileira, senão também, e principalmente este radioso Estado [Paraná], digno de ser conhecido". A comissão destacou ainda que a obra preenchia o objetivo de ensinar a "amar" a pátria e o berço, oferecendo um "rutilante exemplo, comunicativo, de veneração e civismo". Além disso, apresentava a informação de que o livro fora premiado com medalha de prata pelo Júri Superior da Exposição Nacional de 1908, indicando seu reconhecimento institucional.
No texto didático, Sebastião Paraná constrói, de forma inaugural, uma narrativa que atribui papel fundamental ao clima e à terra na configuração da riqueza e potencial do Brasil, e mais especificamente do Paraná, relacionando tais elementos à Europa e aos europeus. Nele o Brasil é descrito como uma “plaga bendita, destinada a servir de refúgio ao proletariado aflito, aos aflitos de outras regiões do mundo” e que “tem todos os elementos para se tornar o maior celeiro do mundo, em consequência da vastidão do seu solo e variedade de seu clima adaptáveis a todas as espécies de culturas agrícolas” (Paraná, 1903, p. 47). Segundo o texto, estados como São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Minas Gerais se destacam por seus "climas suavíssimos, verdadeiros refúgios dos tuberculosos". (Paraná, 1903, p. 40). O livro descreve especialmente o Paraná como um "estado novo, de terras fertilíssimas e clima delicioso", afirmando que o clima de Curitiba é "temperado e excelente", e sublinhando que "o europeu que aqui chega pensa que está em sua pátria, não existindo calor ardente e nem frio excessivo" (Paraná, 1903, p. 125). Além disso, o Paraná é descrito como uma "enorme oficina aberta ao trabalho, a todas as especulações industriais" (Paraná, 1903, p. 106). Para o autor a "opulência e a pujança vegetativa dão um testemunho vivo da prodigalidade com que nos dotou o Criador", especialmente nas regiões do norte e oeste do estado. Indicando que um elevado grau de “progresso” seria atingido quando “afluírem ao Paraná grandes capitais e copiosa imigração demandar nossas plagas para explorar suas abastosas riquezas naturais” (Paraná, 1903, p. 110).
Além do clima e da terra, a narrativa se detém sobre a formação e características da população brasileira e paranaense. Neste sentido, Sebastião Paraná apresenta uma visão ambígua e idealizada do que considera a contribuição das diferentes etnias para a formação da sociedade brasileira e, implicitamente, do Paraná. Reproduzindo uma visão corrente em sua época, ele afirma que "três elementos étnicos: o europeu, o africano e o índio" constituem a nação brasileira, mas com a lamentável observação de que os indígenas estavam "em via de extinguir-se lentamente". Apesar disso, o texto afirma que da "assimilação dessas três raças fortes e sadias resultaram vantagens à coletividade". Os primeiros colonizadores portugueses e depois os imigrantes europeus, no entanto, são considerados predominantes na constituição étnica do Brasil. Enquanto os portugueses são representados como povo que contribuiu para o progresso, não apenas do pais, mas da humanidade “espalhando a centelha da civilização”, e foram responsáveis por uma herança colonial constituída pela “língua, religião e costumes”; os imigrantes europeus são retratados como cruciais para o desenvolvimento e prosperidade do Brasil e do Paraná. Para tanto, o autor sublinha a “volumosa corrente imigratória” formada por europeus buscando “melhorar de sorte na terra onde a natureza armou a sua mais soberba e faustosa oficina” (Paraná, 1903, p. 74). Em sua visão, os imigrantes europeus são fatores fundamentais da prosperidade material, do incremento da agricultura, da indústria. Seus elementos são associados a valores como trabalho, esforço, considerados fundamentais para extrair as potencialidades da terra e natureza de que é dotado o Paraná, e impulsionar o progresso do estado.
Vejamos como o texto constrói uma narrativa histórica que busca explicar como os povos indígenas, inicialmente acolhedores, rebelaram-se contra os colonizadores e, com isso, foram reduzidos à condição de povo “pária, órfão da fortuna”, e portanto, em “vias de extinção”. O primeiro contato com a expedição de Cabral é descrito como "tocante", com os povos indígenas recebendo os portugueses com "sinceras demonstrações de júbilo e de harmonia", auxiliando no povoamento e até se casando com as portugueses condenados que foram deixados na terra. Em seguida, revela que o "selvagem rebelou-se" contra a "injustiça de seus algozes, contra a escravidão cruel, contra o cativeiro ignominioso, aviltante a que o submeteram". Segue-se então uma crítica direta à "criminosa indiferença" da sociedade em relação ao destino dos indígenas, vistos "pária, órfão da fortuna”. Por fim, o autor faz um apelo à "solidariedade humana" para cuidar dos "poucos selvagens que restam, — nossos inditosos irmãos, filhos legítimos desta terra que adoramos", sugerindo que eles "prestarão bons serviços à Pátria, quando inteligentemente incorporados à coletividade nacional". Assim, embora o texto reconheça as injustiças contra os povos indígenas, sugere que sua extinção é inevitável, e que sua “incorporação” é a única solução solidária e útil para o Brasil.
Por sua vez, o texto trata a questão dos negros escravizados e sua “assimilação” como benéficas para o Brasil, defendendo que no país prevalece a igualdade racial. Ele reconhece que o africano foi “criminosamente arrebatado de pátrios lares”, e enaltece aquilo que apresenta como características do povo negro: “resignação, meiguice, sentimentos afetivos, devotamento às lides rurais". Assim, estabelece uma representação dos negros escravizados marcada pela passividade e conformismo. Sua refutação de qualquer ideia de inferioridade do negro se assenta na ideia de que o povo brasileiro, por compaixão e seguir os preceitos do “Evangelho” rejeitou transformá-lo em “pária”. O texto exalta o “amor à liberdade” e celebra diversas figuras negras notáveis em diferentes área da cultura. Por fim, conclui com a afirmação de que no Brasil há igualdade racial, em contraste com o que ocorre nos Estados Unidos da América: “ao contrário dos norte americanos não se preocupam os brasileiros com preconceitos inconfessáveis de raça, de cor, de religião. Aqui são todos iguais, todos vinculados pela fraternidade”. O argumento apresentado no texto é um exemplo clássico antecipador do "mito da democracia racial" brasileira, ignorando os mecanismos sutis de exclusão da população negra, mantidos de forma estrutural e velada, após a abolição da escravidão no Brasil, em 1888.
Sebastião Paraná compartilha um visão corrente em sua época entre intelectuais brasileiros que enaltece o papel de colonizadores e imigrantes europeus na construção do Brasil e do Paraná. Seu aparente reconhecimento de valores morais dos povos indígenas e da população negra relega a eles uma posição passiva, transformando-os em alvo de “compaixão”, abrindo como únicas perspectivas a assimilação e, no limite, a extinção. Desta forma, o texto didático é relevante pois contribui para fundar e difundir no campo didático uma narrativa ideológica que servirá para mascarar e perpetuar as desigualdades raciais no Brasil, impedindo o reconhecimento do problema e fundando bases da ideia de que o país, e o Paraná em especial, é (ou deveria se tornar) predominantemente europeu.
A CONSOLIDAÇÃO DO “PARANÁ EUROPEU”: O CENTENÁRIO DO PARANÁ EM 1953
O segundo momento desta análise podemos identificar como da “consolidação do Paraná europeu” pelo movimento acadêmico de historiadores ligados à Universidade Federal do Paraná (UFPR), liderados por Brasil Pinheiro Machado. Neste espaço universitário e autorizado pela ciência, um grupo de pesquisadores realizou estudos historiográficos sistemáticos buscando compreender a formação agrária do estado, usando métodos demográficos e sociológicos. Segundo Cordova (2016, p. 44) Machado dedicou-se ao estudo dos Campos Gerais no Paraná e de suas estruturas agrárias, tendo como base elementos constitutivos da formação histórica do Paraná e do processo de imigração paranaense. Deste estudo resultou a proposição de diretrizes para uma história regional do Paraná, sintetizadas no texto Sinopse da história regional do Paraná, de 1951, onde Machado defendia que a compreensão do Paraná deveria levar em consideração o contexto nacional de formação do povo e a posse contínua do território. Em suas teses ele confirma e reafirma a predominância europeia na formação dos chamados territórios do estado que teria ocorrido em três ondas de povoamento: uma que dá origem ao “Paraná tradicional”; e outras duas, no século XX, que dão origem ao “Paraná moderno”. Seu texto foi considerado um marco da historiografia paranaense, e um modelo de como deveria ser escrita a história do Paraná.
Cecília Maria Westphalen graduou-se em História e Geografia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal do Paraná, em 1950. No ano seguinte passou a integrar o corpo docente do Curso de História, realizando na instituição uma larga e profícua trajetória, com passagens em instituições na Alemanha e na França. Ao longo de sua trajetória manteve uma relação de colaboração e influência mútua com Brasil Pinheiro Machado em publicações importantes sobre a história do Paraná.
Em seu livro didático Pequena história do Paraná”, publicado em 1953, Westphalen adota o modelo proposto por Machado, ao distinguir o “Paraná tradicional” e o “Paraná moderno” na formação do estado. A publicação da obra também está diretamente ligada ao contexto das celebrações do Primeiro Centenário do Paraná que ocorria no mesmo ano. Segundo Westphalen, a ideia e a publicação do livro foram iniciativa do Dr. Newton Carneiro, presidente da Comissão dos Festejos do Primeiro Centenário do Paraná, e do Prof. Dr. João Xavier Vianna, secretário da Educação e Cultura do estado do Paraná, os quais teriam oferecido inteiro apoio à autora. O fato de a obra ter sido "Aprovada pela Comissão de Professores designada pelo Secretário de Educação e Cultura do Estado do Paraná" (Westphalen, 1953, folha de rosto) expressa um endosso oficial e a intenção de que o livro servisse como um registro histórico e educacional no contexto das comemorações.
Na obra, Westphalen estabelece uma relação profunda e interligada entre a terra, o povo e o clima do Paraná, mostrando como esses elementos se influenciam mutuamente na formação histórica, econômica e social do estado. A narrativa da autora detalha como as características geográficas e naturais da terra atraíram e moldaram a população, enquanto as condições climáticas, embora menos explicitamente abordadas, subjazem e influenciam diretamente as atividades e o modo de vida. Numa síntese de cinco pontos, onde apresenta as teses que organizam a obra, a autora destaca a atuação do “homem”; do “estado” e a “terra” da seguinte forma: num primeiro momento homem e estado realizam a exploração das terras “achadas” no descobrimento do Brasil; num segundo momento o “homem se lança à conquista” da terra estimulado pelas “promessas de riqueza”; o terceiro momento é marcado pela atuação do estado na delimitação das fronteiras do território e ações de povoamento; o quarto momento ocorre após a conquista do território quando a terra já fora conquistada e o “homem” já “estabelecido como proprietário privado” exige autonomia política no contexto nacional; e por fim temos o quinto momento quando “o homem e o Estado conjugam os seus esforços para um melhor aproveitamento das virtudes da terra. É o instante histórico da realização político-administrativa, econômico-financeira e social-cultural do Paraná” (Westphalen, 1953, p. 8). Dessa forma, a obra didática de Westphalen destaca de maneira proeminente o caráter europeu da formação do Paraná, desde a sua "Preparação Histórica" até a "Realização do Paraná". A narrativa é centrada na perspectiva da ocupação, exploração e desenvolvimento do território por povos e sistemas europeus, embora também reconheça a presença e algumas contribuições dos povos indígenas.
Embora a obra não traga um tópico exclusivo sobre o papel do clima, sua influência é percebida através das descrições do meio físico e do cotidiano, estabelecendo uma relação implícita, mas fundamental, entre o clima e o caráter europeu da formação do Paraná, principalmente ao descrever como as condições naturais da terra influenciaram as atividades econômicas e o modo de vida dos colonizadores europeus e seus descendentes, moldando assim a identidade do estado. Um primeiro aspecto é a questão da adaptação de culturas e atividades agrícolas, por exemplo, a menção aos "campos e matas" como base para atividades econômicas as quais implicam em determinadas condições climáticas que favorecem essas formações vegetais, como a criação de gado e a extração de mate e madeira. O sucesso do café no Norte do Paraná e a descrição de "terras férteis" são indícios de um clima propício para essas culturas. Um segundo aspecto pode ser descrito como impacto do clima no cotidiano. Para tanto a autora utiliza passagens literárias que oferecem vislumbres do clima paranaense, por exemplo, no poema citado, de Paulo Setúbal, intitulado "Nhô João, O Tropeiro", são mencionadas "noites de frio batidas de água e tufão" e o "descanso da sesta, no meio duma floresta" no verão, ilustrando as condições que os tropeiros enfrentavam (Westphalen, 1953, p. 52). No poema de Emiliano Perneta, "Setembro" se descreve: "Que lindo céu azul! e que dias suaves! Que frescura! que olor! que límpido gorjeio!", evocando um ambiente natural agradável que é intrínseco ao clima local. Outra estratégia que destaca a função do clima se faz por contraste e atração. Assim, a obra, ao descrever a vinda de migrantes "que fogem à aridez de sua terra" para as "terras de onde jorra o ouro dos cafezais", implicitamente compara as condições climáticas desfavoráveis de outras regiões com a prosperidade do Paraná, atribuída também às suas condições naturais.
Em síntese, podemos dizer que Pequena história do Paraná tece uma narrativa onde a terra com seus recursos e desafios geográficos (rios, serras, campos, matas, minerais), o povo com suas diversas origens e formas de ocupação (indígenas, colonizadores, bandeirantes, imigrantes) e, de forma mais subentendida, o clima com suas influências nas atividades agrícolas e no modo de vida, são elementos inseparáveis que culminam na "realização do Paraná".
Na “realização do Paraná” os povos indígenas e negros são representados de formas distintas, refletindo suas diferentes inserções e papéis na narrativa da formação do Paraná e do Brasil colonial. Os indígenas são retratados com maior agência e protagonismo na história inicial do Paraná. Eles são vistos como os habitantes originais, “povos naturais”, guerreando, resistindo à escravidão forçada e sendo o foco das missões jesuíticas e das bandeiras. Ao mesmo tempo, o texto expressa a ideia preconceituosa sobre a relação do indígena com o trabalho ao afirmar que "não se submeteu, melhor, não se adaptou" ao trabalho escravo imposto pelo "branco europeu" em engenhos, roças e lavras, pois sua formação "não era adequada para tal". Ainda assim, os indígenas não são representados apenas como vítimas, mas também como resistentes à penetração europeia, enfrentando os exploradores com “bravura”. Os negros, por outro lado, são introduzidos primariamente em sua função de mão de obra escrava, e sua história é contada principalmente através da imposição da escravidão e, posteriormente, da luta pela sua abolição, com o destaque recaindo mais sobre os abolicionistas (brancos) e as leis. A presença negra no Paraná é explicitamente minimizada em termos de contingente e impacto econômico direto, o que sugere uma representação menos central na especificidade da história paranaense, ao contrário de sua centralidade na história econômica colonial do Brasil como um todo.
Como podemos verificar, as obras O Brasil e o Paraná, de Sebastião Paraná, e Pequena história do Paraná, de Cecília Maria Westphalen, apresentam significativos pontos de convergência. Cinquenta anos depois a obra de Westphalen pode ser vista como uma continuidade muito mais aprofundada da obra de Sebastião Paraná, marcada pela influência de uma historiografia profissional e pelas ideias e modelos elaborados por Brasil Pinheiro Machado. Um aspecto significativo é o fato de Westphalen incluir O Brasil e o Paraná e mais duas obras de Sebastião Paraná em sua bibliografia. De certo modo, podemos dizer que a Pequena história do Paraná atua como uma continuidade didática, aprofundada e comemorativa de O Brasil e o Paraná, atendendo a uma finalidade mais voltada para a difusão e celebração do percurso histórico do estado. Sua história paranaense, no entanto, ao enfatizar aspectos relacionados à terra, clima e “homem” que destacam o protagonismo dos colonizadores, os ciclos econômicos impulsionados pelos europeus e a narrativa da “civilização” que avançava sobre o “primitivo”, acaba por reproduzir e reforçar uma perspectiva eurocentrada da formação do estado, em detrimento de uma análise mais aprofundada dos elementos indígenas e africanos que formaram o Paraná.
O RACISMO ENSINADO ÀS CRIANÇAS: A ABELHINHA ESTUDA O PARANÁ (1968)
A terceira obra que apresentamos é A Abelhinha estuda o Paraná, de Enói Renée Navarro Swain, publicada no Paraná, no ano de 1969. Sua publicação ocorreu no contexto político da ditadura civil-militar vigente no Brasil após o golpe militar de 1964, e que inaugurou um período de forte intervenção estatal na educação brasileira. A impressão do livro em dezembro de 1968, coincidiu com a decretação do ato institucional número 5, o AI-5, considerado o ato que inaugurou o período mais sombrio da ditadura no Brasil, ao suspender os direitos constitucionais que restavam depois do golpe de 1964, aprofundando a censura e a repressão contra os opositores do regime. Neste contexto a ditadura passou a impor à educação uma ideologia nacionalista e desenvolvimentista dando ênfase na formação cívica, no amor à terra, nos símbolos do progresso e na história oficial do Estado. Como veremos, o texto de Abelhinha alinha-se a este discurso nacionalista e cívico ao detalhar o desenvolvimento econômico do Paraná através de seus ciclos, valorizar figuras históricas e apresentar governadores e presidentes de forma heroica, com o objetivo de incentivar o orgulho pela pátria e o estado. A obra enfatiza a necessidade de conhecer a própria terra para amá-la, direcionando-se ao "leitorzinho" para que ele aprenda sobre o Paraná, seu município, estado e país.
Segundo o Centro de Documentação de Literatura de Autoria Feminina Paranaense (CEDOC-LAFEP), Enói Swain (1920-2009) foi uma
Escritora, jornalista e pedagoga, que se dedicou ensino, explorando a leitura e a contação de histórias. Foi membro da Academia de Letras José de Alencar, da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil, do Centro de Letras do Paraná e do Pen Club do Brasil. (CEDOC-LAFEP, s. f.)[3]
Seu livro didático A Abelhinha estuda o Paraná integra uma série escrita pela autora que tem como protagonista uma personagem chamada Abelhinha. A publicação em tela foi realizada com apoio do "Centro de Estudos e Pesquisas Educacionais" da Secretaria de Educação e Cultura do Paraná, a quem a autora expressa agradecimentos dirigidos à então diretora do órgão, Isolde Julieta Andreatta, por "estímulo e encorajamento para prosseguir" na "difícil tarefa de contar para crianças a história e a geografia de nosso Estado". Trata-se portanto de uma obra alinhada às diretrizes educacionais oficiais, produzida como uma “edição especial para o estado do Paraná”, e concebida como um “livro de leitura para o 3º ano primário com exercícios de linguagem e gramática aplicada”.
O livro A Abelhinha é organizado em 70 lições. Ele apresenta um grupo central de personagens que interagem e aprendem sobre a história e geografia do Paraná, revelando suas personalidades e visões de mundo ao longo da narrativa. As principais personagens são: Abelhinha, uma menina branca, que possui este apelido pois é “trabalhadeira como uma abelha”, “muito esperta”, e “reclamadeira”; Zulu, “uma pretinha muito engraçadinha”, menina negra órfã, que está sendo criada pela mãe de Abelhinha, a Dona Zuleica; esta por sua vez é a mãe educadora que ocupa posição de figura central nas narrativas das “histórias verdadeiras” e que explica os conceitos de história e geografia para as crianças; Tininha, é a irmã mais velha da Abelhinha; Augustinho é um menino da vizinhança que de “tanto ler virou um dicionário” sendo a quem as crianças recorrem para descobrir o significado de palavras difíceis; o Comandante Paulo, é o pai de Abelhinha, Tininha e Gugo, aviador, ele complementa as explicações de Dona Zuleica dadas as crianças; Gugo, é o irmão menor da família; completa o quadro de personagens Maria das Neves, a “cozinheira preta” que cuida da casa, e do pequeno Gugo.
A obra apresenta diversos trechos que revelam estereótipos e preconceitos raciais, tanto de forma explícita quanto velada. Tais elementos podem ser observados nas descrições dos personagens, em suas falas e pensamentos, como na forma que a história do Paraná é contada, especialmente nos episódios que abordam temas referentes a pessoas negras e povos indígenas. A personagem Zulu, por exemplo, é descrita em sua primeira aparição como uma “pretinha muito engraçadinha”, ela surge em meio a uma discussão familiar sobre uma possível viagem à praia, e revela saber de sua “posição” questionando se também poderia ir junto. Na sequência a narrativa se desdobra revelando a condição necessária para que Zulu possa viajar com a família de Abelhinha para a praia: terminar a cartilha e passar para o livro do 1º ano. A lição 4, intitulada “A pretinha Zulu quer ficar branca” é explicitamente racista. Nela, Dona Zuleica dialoga com Zulu sobre ir as condições para ela ir ao passeio na praia:
Imagem 1. Livro A Abelhinha estuda o Paraná
Fuente: Swain (1969, p. 21).
—Você vai junto, se terminar sua cartilha. Onde já se viu, uma menina que é mais velha que a Abelhinha, ainda lendo na cartilha. Se você não passar para o livro do 1º ano, vai ficar em casa, com a cozinheira.
—Eu não quero ficar com a Maria das Neves: vi no cinema como é bonito, lá na praia. Todas as crianças de pé na água, chape, chape! Ou então brincando na areia. Ou então, brincando na areia. Os meninos de calção de banho e as meninas com aquela roupinha curta, chamada malhô.
—Não é malhô, Zulu, é maiô. E trate de aprender a ler, para falar certo. Você fala errado, porque não lê e não vê como a palavra é escrita. Estude um sozinha e venha ler para eu ouvir.
—Viu, Zulu? Trata de aprender a ler. E depois, o banho de mar é capaz de deixar você meio branca, inventou a Abelhinha.
—Puxa! Se o banho de mar me deixar meio branca, vou aprender a ler depressa, para não ficar em casa nas férias.
—Então corra a buscar sua cartilha. Vamos corra!
Zulu saiu dando uma risada daquelas, de mostrar todos os dentes, que eram alvos e bonitos.
—Parece uma canjica na carinha preta, disse a Abelhinha.
—Gosto de Zulu. Ela é moreninha por fora, mas é branca por dentro, porque é boa, disse Dona Zuleika. Existe por aí muita gente que é o contrário: é branca por fora, mas é preta por dentro, por que é má. (Swain, 1969, pp. 21-22)
Analisando o texto acima podemos identificar graves enunciações de discriminação racial diretas e indiretas. Em primeiro lugar há uma responsabilização da criança negra por não saber ler e assim não falar “direito”, que omite a condição do escravizado, ou liberto, a quem era negado o acesso à educação. Neste caso, falar errado indica a condição da pessoa analfabeta e a responsabiliza por sua própria condição. Em segundo lugar, o texto reforça a mitologia do branqueamento como algo positivo e desejável, que corresponderia a uma via de acesso a uma condição superior de inteligência e de superioridade moral. Este aspecto é notável no trecho que associa bondade à branquitude, e negritude à maldade. O que indica a necessidade de Zulu negar e invalidar sua identidade racial condicionando sua aceitação social por sua suposta “branquitude interior”, como se sua negritude fosse um defeito a ser superado pela “bondade”[4]. Negação que também lhe traria, com o banho de mar, um aumento de sua capacidade cognitiva, traduzida em maior velocidade de aprendizagem. Além disso, há um elemento ligado à ameaça de castigo como método de aprendizagem. Não aprender significa ter negada a chance de ir à praia, e, além disso, ter de ficar com a “cozinheira preta”, cuja presença na viagem sequer é cogitada. Estes elementos são robustos o suficiente para demonstrar como o livro expressa o que intelectuais negras/os brasileiras/os denominam “racismo à brasileira”[5], que se caracteriza por não ser abertamente segregacionista, mas por operar através da idealização do branco e da branquitude promovendo a completa desqualificação do negro, ainda que o faça de uma forma velada e disfarçada como supostamente elogiosa.
Uma situação semelhante de desumanização, infantilização e estereotipagem pode ser verificada também na representação dos povos indígenas no texto de A Abelhinha. Em primeiro lugar o livro inicia a história do Brasil partindo da premissa de que não havia qualquer “civilização” antes da chegada dos colonizadores portugueses: "Longe, muito longe daqui, vivia um rei, em teu castelo... enquanto aqui não havia nada disso. Só índios. Nem cidades, nem casas bonitas, nem lojas, nem ruas" (Swain, 1969, p. 37). A própria forma como os povos indígenas são descritos reforça a ideia de “não civilizados”, e portanto, “atrasados”:
Os índios viviam em estado natural, quer dizer, não vestiam roupas. Só usavam tangas ou enfeites de penas, e colares de ossos, de conchas ou de dentes. Moravam em casas chamadas ocas. Casas é um modo de dizer, porque eram uns ranchos feitos de barro e ramos de árvore. Não sabiam ler nem escrever. Não comiam com talher, enfim, não eram civilizados, como os portugueses, isto é, não eram adiantados. (Swain, 1969, p. 39)
Além disso, os indígenas são retratados como ingênuos e enganáveis, equiparados a crianças: "Coitados, pareciam crianças, disse Augustinho. — Pareciam. Qualquer um podia enganá-los. Davam madeiras preciosas e caríssimas em troca de qualquer espelhinho ou canivete" (Swain, 1969, p. 54). Por fim, o texto naturaliza a ideia de “superioridade” dos “civilizados” sobre os “não civilizados”, como revelam as palavras de Dona Zuleika ao admoestar Abelhinha pelo desejo de ser “índia” para assim não ir à escola: “foi bom que você viu que é melhor, minha filha. Porque as pessoas civilizadas sempre acabam tomando conta das que não são".
O livro A Abelhinha apresenta aspectos extremamente problemáticos pois incorpora e reforça os estereótipos, preconceitos e discriminações contra negros e indígenas, da época que foi escrito, ao mesmo tempo que enaltece a suposta “superioridade” dos elementos europeus, portugueses ou luso-brasileiros apresentados como “descobridores”, “donos da terra”, “colonizadores”, “civilizadores”, “exploradores”, “pioneiros”, “fundadores”. “líderes”, “governantes”, “heróis da emancipação”. Os personagens brancos que sustentam a narrativa são revestidos por características positivas tais como: esperteza, curiosidade, bondade, paciência, firmeza, disciplina intelectual, coragem, pontualidade, autoridade e conhecimento. Além de possuírem habilidades como percepção, capacidade de representação espacial, de indagação, de imaginação, de liderança. Enquanto negros e indígenas são representados como pouco inteligentes, atrasados, subalternos. O Paraná que Abelhinha estuda, e indiretamente ensina às outras crianças, portanto, anula a presença indígena, discrimina a população negra e exalta suas características europeias. Trata-se de um livro escolar que radicaliza o discurso eurocêntrico que se manifesta numa visão racista e discriminatória sobre a formação do Paraná.
A PERMANÊNCIA DO “PARANÁ EUROPEU”: HISTÓRIAS DO COTIDIANO PARANAENSE (1996)
A última obra que apresentamos é Histórias do cotidiano paranaense, produzida sob a orientação de pesquisa e texto final da professora Maria Auxiliadora M. S. Schmidt, publicada em 1996, pela editora Letraviva. Sua produção contou com a colaboração de uma equipe formada pelas pesquisadoras Adriana de Quadros, Rita de Cássia Gonçalves dos Santos e Cíntia Palma. O projeto editorial foi de Celso Nascimento e Ayrton L. Baptista, com ilustrações de Márcia Széliga e Priscilla Sanson Martins, e revisão de Vera Lucia Xavier Aor e José Francisco Coelho. O livro foi endossado e apresentada pelo Secretário de Estado da Educação, Ramiro Wahrhaftig e o Secretário de Estado da Cultura do Paraná, Eduardo Rocha Virmond.
Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt possui uma longa e destacada trajetória na educação e na pesquisa histórica brasileira, especialmente ligada à Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde se formou e se tornou professora titular aposentada. Ela participou ativamente na produção de propostas curriculares oficiais do Paraná tendo um destacado papel na formação de professoras/es de História. No contexto em que a obra foi escrita a historiografia paranaense passava por um processo significativo de crítica e desconstrução do “paranismo”, como resultado dos avanços da pesquisa historiográfica regional e dos novos aportes teóricos da história social e cultural (Burmester et al., 1990). Além disso, a obra foi escrita no momento de renovações curriculares no Brasil e no Paraná, quando as críticas à chamada história tradicional de caráter positivista e oficial já alcançavam os livros escolares, em direção ao que foi chamado de “história crítica”, uma perspectiva que busca valorizar as atuações de diferentes sujeitos históricos na construção da sociedade e as lutas por direitos e cidadania. Em que pese essas circunstâncias do momento historiográfico de produção, o livro Histórias do cotidiano paranaense não busca uma ruptura com marcos da historiografia paranaense como Brasil Pinheiro Machado, nem com temas já estabelecidos por exemplo, no livro de Cecília Westphalen, como os ciclos de formação do Paraná. A introdução da História do cotidiano e a valorização de elementos não-europeus na formação do Paraná se equilibram com temas tradicionais da historiografia didática paranaense.
Do ponto de vista didático, a publicação do Histórias do cotidiano paranaense, segundo o texto de apresentação do livro, visava complementar a bibliografia existente sobre o Paraná, sendo concebida como um “interessante instrumento paradidático”. Seu propósito foi “introduzir na perspectiva diacrônica a dimensão coletiva do ‘viver dos homens’”, buscando desenvolver a ideia de “ocupação física, social e temporal do espaço”, procurando seguir “o caminho teórico estabelecido pelo historiador Brasil Pinheiro Machado”, e tendo como meta “revelar histórias do cotidiano”. Entendido como resgate da “saga dos paranaenses - da ocupação aos dias de hoje”, sugere que o “presente do Paraná é fruto do seu passado” e que o modo de viver das primeiras populações, somado à contribuição dos imigrantes (europeus) forjaram nossa cultura, pavimentando o caminho do futuro”. Vemos, portanto, quase meio século depois, a mesma alusão ao modelo proposto por Machado, e adotado na obra de Cecília Westphalen, para compor a narrativa da história paranaense.
Assim como as demais obras já analisadas, Histórias do cotidiano paranaense retrata a importância das condições geográficas e, especialmente do clima na formação histórica do Paraná, seja apresentando-as como fatores de atração e progresso quanto como desafios a serem superados. Explica-se que imagens de atração foram construídas por viajantes europeus, desde os primeiros tempos da colonização, como a de que o Paraná possuía um “clima ameno e agradável” (Schmidt, 1996, p. 14) que serviram de estímulo para vinda dos primeiros povoadores e depois dos imigrantes. Neste sentido, relata que “viajantes que estiveram no Paraná, no século dezenove, descreveram as belezas inigualáveis dos Campos Gerais, da mata das Araucária, além do clima semelhante ao da Europa e da generosidade e hospitalidade do povo” (Schmidt, 1996, p. 58). A “fertilidade das terras”, os “bons pastos nativos”, a “água abundante” e a “presença natural da erva-mate” foram elementos básicos para as atividades econômicas fundamentais e até para a emancipação política do estado. No entanto, em contraste com a exaltação do ambiente natural dos livros anteriores, a obra ressalta que, apesar da idealização, o território apresentava “perigos e desconfortos”. Para os imigrantes, por exemplo, “havia a dificuldade de adaptação ao clima - quente demais”, levando alguns a retornarem a seu país (Schmidt, 1996, p. 61). A obra, portanto, ao mesmo tempo em que apresenta as condições geográficas e climáticas do Paraná como elementos centrais na atração populacional e no desenvolvimento econômico e cultural do estado, reconhece os desafios impostos por essas mesmas condições ao longo da história.
Considerando os povos indígenas podemos verificar que Histórias do cotidiano paranaense os representa dando foco em sua cultura preexistente, sua relação com o território e os recursos naturais (como a erva-mate), e a forma como sua vida foi drasticamente alterada e imposta por europeus (reduções, catequização). O livro destaca como a representação idealizada dos povos indígenas pelos colonizadores europeus cedeu gradativamente à formas de hostilização e desumanização: “O indígena passou a ser visto como bárbaro, como humanidade depravada e demoníaca, como o selvagem que deveria ser civilizado ou vencido” (Schmidt, 1996, p. 12). A obra também aborda a luta atual dos indígenas pela preservação de suas terras e cultura em um contexto de integração forçada. Nessa perspectiva a obra se diferencia das outras ao buscar fornecer um tratamento adequado à temática indígena no Paraná.
Já a representação dos negros na obra se concentra quase que exclusivamente na condição da escravidão, detalhando a exploração do trabalho, as punições sofridas e, enfaticamente, sua luta incansável pela liberdade e o movimento abolicionista. Mas, sobretudo, ao contrário das obras anteriores Histórias do cotidiano paranaense afirma que a escravidão no Paraná foi “bastante significativa” (Schmidt, 1996, p. 43), embora não tão numerosa quanto em outras regiões do Brasil, destacando o uso do trabalho escravo em diversas ocupações como colheita do erva-mate, criação de gado, extração de madeira, etc.
Enquanto a obra reserva para os povos indígenas registros de suas práticas antes da chegada do "homem branco", para os negros, o foco está na experiência da escravidão e nas dinâmicas de poder e resistência que dela decorrem. Ambos os grupos são mostrados como vítimas de um processo de ocupação territorial e exploração econômica, mas a obra sublinha a adaptação e resistência indígena frente à desestruturação de sua cultura e a resiliência e agência do negro escravizado na busca por sua liberdade. Em que pese os aspectos assinalados sobre a formação do Paraná, a obra Histórias do cotidiano paranaense reitera a ideia de que “o Paraná tradicional” surgiu notadamente dos “imigrantes europeus que, no século dezenove, atraídos pela promessa de fortuna, tornaram fortes a agricultura e a extração de madeira” (Schmidt, 1996, p. 30). Assim como foram responsáveis pela introdução de novas formas de lazer, de alimentos “saudáveis” na culinária. A obra destaca que foi a “presença significativa do imigrante que ajudou a construir a feição europeia da cidade de Curitiba”. E assim um dos capítulos se intitula: “Imigrantes diferentes, todos se tornaram paranaenses” (Schmidt, 1996, p. 59).
Mas talvez, sejam as ilustrações do livro que mais contribuem para a fixação deste imaginário que reproduz o cânone europeu da formação paranaense. Vejamos a seguir duas delas. A primeira é a ilustração que abre o primeiro capítulo do livro, cujo título “E tudo começa: o homem branco chega ao Paraná” induz claramente à ideia de um território vazio e sem história, enquanto a imagem retrata a luta entre o imaginário fantástico e a racionalidade científica que anima os navegadores e descobridores europeus.
Imagem 2. Livro Histórias do cotidiano paranaense
Fuente: Schmidt (1996, p. 11).
Ressaltamos a nítida contradição entre a ilustração e o título do capítulo que induzem á ideia de protagonismo europeu diante de um território marcado pela ausência de culturas ou civilização, e o conteúdo do capítulo, que busca abordar aspectos da presença dos povos indígenas antes da chegada dos europeus e a construção de um imaginário europeu sobre essas populações originárias.
A imagem que fecha a obraé uma ilustração de uma cena que se passa supostamente num aparelho de televisão. Na tela, quatro crianças brancas, dois meninos e duas meninas de diferentes idades, aparecem sorrindo num ambiente aberto, um terreno coberto por uma vegetação rasteira, ladeado por duas Araucárias (símbolos do Paraná), e o céu azul ao fundo. O texto que acompanha a imagem, intitulado “Paraná hoje e amanhã. Saúde, força e fartura” foi extraído de uma revista brasileira de grande circulação nos anos de 1980, a Manchete. Ao tratar da fartura que, segundo o texto da revista, caracteriza o Paraná, afirma o seguinte: “Nada ilustra melhor essa fartura e os resultados de uma alimentação sadia do que a fisionomia das crianças paranaenses. Elas demonstram saúde, beleza, vitalidade, inteligência” (Schmidt, 1996, p. 121). Como a imagem denota, o Paraná, ao final, é uma terra de fartura, marcada pelos hábitos alimentares saudáveis trazidos pelos imigrantes europeus e onde triunfou o branqueamento da população.
Imagem 3. Livro Histórias do cotidiano paranaense
Fuente: Schmidt (1996, p. 121).
Neste sentido, tanto a abertura como o fechamento da obra Histórias do cotidiano paranaense parece revelar uma contradição exemplar entre o texto pretendido pela autora e as ilustrações que o acompanham. Neste caso, a imagem e o texto que a acompanha, denotam a ideia de branqueamento da população como processo triunfante da formação do Paraná. Tais contradições denotam uma situação paradoxal na qual tentativas de assimilação de novas perspectivas sobre a formação do Paraná no texto, entram em nítida contradição com a permanência da representação do Paraná europeu nas imagens e ilustrações do livro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As quatro obras analisadas —O Brasil e o Paraná, Pequena história do Paraná, A Abelhinha estuda o Paraná, e Histórias do cotidiano paranaense— foram escritas por intelectuais ligados ao campo educacional e receberam apoio institucional oficial do poder educacional paranaense, sendo destinadas às escolas de ensino básico. Produzidas em contextos históricos bastantes distintos, suas abordagens sobre a história do Paraná, revelam divergências, mas também aproximações significativas de uma perspectiva eurocentrada da história e identidade paranaense. Uma história eurocentrada, aqui entendida como aquela que prioriza a chegada e as ações europeias, a cultura e os feitos europeus, enquanto minimiza, desvaloriza ou retrata negativamente as contribuições e experiências dos povos indígenas e das pessoas de origem africana.
Se pudéssemos definir diferenças e graus de um discurso eurocentrado entre as obras, poderíamos dizer que O Brasil e o Paraná poderia ser considerada primariamente eurocentrada, e marcada por ambiguidades e contradições. Efetivamente a obra de Sebastião Paraná adota um tom marcadamente patriótico e celebratório, visando inspirar "veneração e civismo". A história é contada para ressaltar a grandeza do Brasil e do Paraná. Além disso, apresenta uma visão bastante problemática sobre a suposta “extinção” dos povos indígenas, normalizando o processo e apostando na compaixão como guia do processo de assimilação. Sem explorar as complexidades e violências inerentes ao processo de formação do Paraná, o texto não se aprofunda nos aspectos brutais e desumanizadores da escravidão, focando mais nos resultados positivos ou vantagens da miscigenação. De certo modo, antecipa uma visão de democracia racial e de branqueamento do Paraná.
Por sua vez, Pequena história do Paraná, poderia ser considerada uma continuidade de uma visão eurocentrada, mas com importantes esforços de inclusão factual, assentados no aprofundamento e profissionalização dos estudos historiográficos, baseados no modelo interpretativo de Brasil Pinheiro Machado. Estes aspectos permitem, por exemplo, o reconhecimento da cultura e resistência indígena à escravidão, sem entretanto romper com a ideia de que "o índio não se submeteu, melhor, não se adaptou", o que levou à busca por mão de obra africana, como afirma a autora. O texto descreve as motivações europeias para a colonização (fé católica, cristianização, busca de riquezas e especiarias), mas de uma forma mais expositiva do que justificadora, adotando um tom mais descritivo e menos propagandístico em comparação com O Brasil e o Paraná. Resulta da obra, no entanto, uma visão que exalta a perspectiva de um Paraná marcado pelo progresso oriundo de um esforço predominantemente europeu.
A Abelhinha estuda o Paraná é a obra mais fortemente eurocentrada e problemática, seja porque além de ser eurocentrada reforça estereótipos, preconceitos e propaga a a discriminação racial. Isto é verificado quando associa explicitamente a brancura à bondade e negritude a algo negativo ou inferior; quando desumaniza e infantiliza povos não europeus justificando sua subjugação; ou ainda quando normaliza papéis subordinados, especialmente das personagens negras retratadas em papéis ligados ao passado escravista. A obra ressente-se da completa ausência de reflexão crítica sobre a moralidade da colonização, da escravidão ou das ideologias raciais que moldaram a formação do Paraná atuando, ao contrário, para reforçá-las ao naturalizar a discriminação racial em sua narrativa.
Por fim, Histórias do cotidiano paranaense é a que mais se afasta de uma visão estritamente eurocêntrica, adotando uma abordagem mais crítica, inclusiva e focada nas experiências de todos os grupos sociais, inclusive as lutas contemporâneas dos povos indígenas, e desconstruindo ideologias raciais do passado. Todavia, a obra reproduz o mesmo modelo interpretativo tradicional de Brasil Pinheiro Machado. Principalmente, possui uma paradoxal e contraditória relação entre a parte textual e as imagens que ilustram a obra, de modo que enquanto seu texto, por exemplo, critica a ideologia do branqueamento que orientava a política de imigração adotada no estado, por outro apresenta imagens que induzem à exaltação dessa mesma ideologia.
Em suma, as obras analisadas refletem diferentes estágios e propósitos na escrita da história escolar, revelando ambiguidades, contradições, e sobretudo permanências na representação de um Paraná forjado como europeu, indicando os desafios de um paradigma ainda a ser superado pela historiografia didática. Trata-se de uma agenda urgente, a exigir uma profunda revisão dos textos escolares considerando a permanência de cânones já desconstruídos pela historiografia paranaense contemporânea e as demandas por uma educação democrática fundada no respeito à diversidade.
REFERÊNCIAS
Fontes primárias
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Schmidt, M. A. M. S. (1996). Histórias do cotidiano paranaense. Letraviva.
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* Paulo Eduardo Dias de Mello é Doutor e Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Líder do Laboratório de Estudos sobre Formação de Professores e Ensino de História - LEFOPEH (CNPq), integra o projeto GLOTREC.
[1] O Ginásio Paranaense, criado em 1892, teve importante papel na consolidação do ensino secundário público em Curitiba, e servir de modelo pedagógico para o Paraná, na Primeira República (1889-1930), formando parte da elite intelectual e política do estado.
[2] A comissão era composta pelos professores Emiliano Perneta (poeta e escritor), Chichorro Junior (pintor) e Dario Vellozo (historiador, poeta e romancista), importantes precursores e influenciadores do ambiente cultural e intelectual que culminou no movimento paranista.
[3] Veja-se https://pbc.uem.br/cedoc-lafep/indice-de-escritoras/e/enoi-renee-navarro-swain-1. Acesso em 09/07/2025.
[4] Este aspecto é reiterado na Lição 11 “Os índios”, no seguinte trecho: “Nós nunca esquecemos das pessoas que foram boas. Não tem importância se a pessoa é feia, é preta ou tem um defeito físico. O que vale é ser boa". A autora formula a ideia de que a “bondade” supera a “cor da pele”, tratando-a como um “defeito físico”. Portanto, ser negro, feio ou possuir um “defeito físico” são características idênticas e negativas (Swain, 1969, p. 40).
[5] Discussões sobre o “racismo à brasileira” podem ser verificadas em autoras/es como Silva (2009), Ribeiro (2019), Almeida (2019), dentre outros.