ENTRE A EDUCAÇÃO E A EMANCIPAÇÃO: UM OLHAR SOBRE O

PAPEL DAS ESCOLAS DAS MISSÕES CRISTÃS EM MOÇAMBIQUE

 

Resumo

O presente estudo é um esforço de uma leitura crítica da historiografia da educação moçambicana, especialmente no que tange ao papel das escolas das missões no processo da emancipação do povo moçambicano. Neste trabalho assume-se a existência de dois grupos de acadêmicos que analisam a história da educação, mas com pontos de vistas antagónicos. O primeiro defende que as missões das Igrejas Protestantes contribuíram bastante para emancipação e libertação do povo, condenando assim as Escolas das Missões Católicas por estas terem trabalhado lado a lado com o colonizador. O segundo grupo defende que nenhuma Escola das Missões contribuiu para a emancipação porque todos tinham ligações com países imperialistas da sua origem, e que toda educação não visava libertar o nativo. Portanto, a base metodológica que vai sustentar o presente trabalho é de natureza bibliográfica e análise documental dos autores que se enquadram nestes dois blocos. No final, defende-se claramente a tese de que na historiografia de educação moçambicana, em nenhuma das fases podemos ter evidência de que as escolas ligadas às instituições religiosas contribuíram para emancipação do povo. São as experiências e vivências que o povo passou, que proporcionaram um tipo de educação informal que despertou esta consciência na colectividade, sob influência de todos os elementos socioculturais, económicos e políticos que o povo moçambicano vivenciou.

 

Palavras-chaves: Educação, escolas, missões, emancipação.

 

 

BETWEEN EDUCATION AND EMANCIPATION: A VIEW ON THE ROLE OF CHRISTIAN MISSION SCHOOLS IN MOZAMBIQUE

 

Abstract

The present study is an effort of a critical reading of the Mozambican historiography of education, especially with regard to the role of mission schools in the process of emancipation of the Mozambican people. The study assumes the existence of two academic groups that analyze the history of education, but with antagonistic points of view. The first one argues that the Protestant Church Missions contributed significantly for the emancipation and liberation of the people, thus condemning the Catholic mission schools because they worked side by side with the colonizer. The second group argues that no mission school contributed for emancipation of the natives because they all had links to imperialist countries of their origin, and that no education was designed to free the natives. Therefore, the methodological basis that will sustain the present study has a bibliographic nature and documental analysis of the authors that fall under these two blocks. In the end, the thesis defended is that, in none of the phases of the Mozambican historiography of education we can find evidence that schools linked to religious institutions contributed to the emancipation of the people. It is the experiences and livelihood that the people went through, which provided a type of informal education that awakened the emancipation awareness in the community, under the influence of all the sociocultural, economic and political elements that the Mozambican people experienced.

 

Keywords: Education, schools, missions, emancipation.

 

 

ENTRE EDUCACIÓN Y EMANCIPACIÓN: UNA MIRADA AL PAPEL DE LAS ESCUELAS DE MISIONES CRISTIANAS EN MOZAMBIQUE

 

Resumen

El presente trabajo es un intento de lectura crítica de la historiografía de la educación mozambiqueña, especialmente en lo que respecta al papel de las escuelas misioneras en el proceso de emancipación del pueblo de Mozambique. En este trabajo, se asume que hay dos grupos de académicos que analizan la historia de la educación, pero con puntos de vista antagónicos. El primer grupo es el que defiende que las misiones de las iglesias protestantes contribuyeron mucho a la emancipación y liberación del pueblo, condenando así a las escuelas de las misiones católicas por haber trabajado codo con codo con el colonizador. El segundo grupo es el que argumenta que ninguna escuela de las misiones contribuyó a la emancipación, porque todas tenían conexiones con los países imperialistas de origen, y que ninguna educación tenía como objetivo la liberación de los nativos. Por tanto, la base metodológica que sustentará este trabajo es el análisis bibliográfico y documental de los autores que se encuadran en estos dos bloques. Al final, se defiende claramente la tesis de que, en la historiografía de la educación mozambiqueña, no tenemos evidencia de que las escuelas vinculadas a las instituciones religiosas contribuyeran a la emancipación del pueblo. Son las experiencias por las que ha pasado el pueblo las que han proporcionado un tipo de educación informal que ha despertado esta toma de conciencia en la comunidad, bajo la influencia de todos los elementos socioculturales, económicos y políticos que ha vivido el pueblo de Mozambique.

 

Palabras claves: Educación, escuelas, misiones, emancipación.

 

 

1.   Introdução

História não deve ser entendida como ciência do passado,

mas como a “[...] ciência da mutação e da explicação dessa mudança.”

Le Goff[1]

 

O processo da educação em Moçambique sempre teve no seu centro a tríade problemática de qualidade de ensino, expansão e acesso. Desde a era colonial o Estado procurou garantir estes três elementos de várias formas, mas muitas vezes condicionadas pelas circunstâncias históricas de cada momento. Ao longo da história de Moçambique, as confissões religiosas sempre foram parceiras do governo no âmbito da materialização do plano de educação, bem como da formação do homem que se desejasse em cada época. O presente trabalho é uma breve leitura histórica da contribuição das instituições de educação ligadas às confissões religiosas, e a forma como estas se expressaram na historiografia da educação moçambicana. Esta leitura assume que a história não é a ciência do passado, mas sim “da mutação e da explicação dessa mudança.”[2]

Em termos metodológicos, para uma leitura desta longa marcha da educação confessional em Moçambique, recorremos à uma perspectiva histórica de análise documental de textos dos especialistas de educação em Moçambique, bem como dos caminhos seguidos pela educação confessional moçambicana, desde o tempo colonial até aos tempos hodiernos. Dada a complexidade do assunto, e por uma questão lógica, os textos dos especialistas selecionados serão divididos em dois grupos, sendo o primeiro grupo composto por Cruz e Silva,[3] Helgesson[4] e Morier-Genoud.[5] Segundo este grupo, os pactos que o governo colonial tinha com a Igreja Católica para a educação do indígena não permitiu que se oferecesse educação que permitisse emancipação dos nativos, e defendem que as escolas das Missões Protestantes é que contribuíram para o despertar no nacionalismo e para a busca da liberdade e da emancipação dos povos nativos.

O segundo grupo é composto por Ngoenha,[6] Castiano e Ngoenha,[7] que defendem que a educação colonial, no geral, foi uma educação colonial-missionária, não apenas por causa dos pactos que o Estado colonial português tinha com a Igreja Católica, mas também porque as outras escolas das Missões Protestantes tinham uma ligação intrínseca com as potências coloniais da sua origem. Por isso, esta educação não tinha formas de preparar o africano em geral e o moçambicano em particular para uma liberdade e emancipação.

Desta feita, o presente trabalho faz uma leitura crítica aos vários documentos escritos em relação à historiografia da educação moçambicana, tomando como base o pensamento de Le Goff que afirma que

 

“Uma explicação histórica eficaz deve reconhecer a existência do simbólico no interior de toda realidade histórica (incluída a econômica), mas também confrontar as representações históricas com as realidades que elas representam e que o historiador apreende mediante outros documentos e métodos – por exemplo, confrontar a ideologia política com a práxis e os eventos políticos.”[8]

 

Sendo o presente trabalho de carácter histórico, é importante realçar a “problematização das relações das instituições educativas com o meio sociocultural”[9] de cada época histórica. O trabalho tem duas grandes partes, a primeira busca compreender a existência do ensino confessional no tempo colonial, e como é que as instituições educativas se posicionaram no processo da evolução da comunidade moçambicana nativa e sobretudo no seu requesto pela emancipação como povo colonizado. Este processo está alinhado com o pensamento de Magalhães, que afirma que “compreender e explicar a existência histórica de uma instituição educativa é contextualizá-la, implicando-a no quadro de evolução de uma comunidade e de uma região.”[10] A segunda parte avalia a política da educação após a independência, bem como os desafios da formação do homem e a relação que o Estado teve com as confissões religiosas e suas instituições ligadas ao processo educativo nacional.

Ao analisar a educação confessional em Moçambique é importante realçar as relações que existiam entre o Estado e as confissões religiosas nos vários estágios da história do país, assumindo que uma das maiores responsabilidades do Estado é garantir a educação como um direito de todos os cidadãos, e que as confissões religiosas sempre foram parceiras activas neste processo. Ainda seguindo o pensamento de Magalhães, neste trabalho realça-se a relação entre as instituições educativas de carácter confessional com as comunidades nativas e as políticas de acesso à educação vigentes em cada fase histórica.

 

2.   Educação Confessional no tempo colonial

O sistema de educação colonial em Moçambique estava dividido em dois maiores blocos, as escolas das missões, e as escolas oficiais. Os primeiros destinavam-se a formação dos povos nativos, com estatuto de indígenas, assunto que mais tarde será tratado com mais detalhes. Por sua vez, as escolas das missões estavam subdivididas em missões católicas e missões protestantes. O segundo grupo é das escolas oficiais, controladas e geridas diretamente pelo governo colonial, destinados para uma minoria de portugueses e nativos assimilados (que já não tinham o estatuto de indígenas). Para o presente trabalho o foco será das escolas das missões, referindo às escolas que estavam intrinsecamente ligadas e orientadas pela ideologia da Igreja católica ou Igrejas de caris protestante.

 

2.1    A Educação Colonial-Missionária

Na história da educação em Moçambique, as confissões religiosas sempre estiveram na vanguarda porque elas é que ofereciam soluções alternativas, não apenas para a educação, mas também para a saúde. Antes da independência nacional em 1975, o país era predominantemente cristão, com um número reduzido de muçulmanos e com missionários cristãos de várias denominações activas em todo país. Para analisar a educação confessional o estudo assume uma posição de educação colonial-missionária porque não é possível separar a educação colonial da educação que era oferecida por missionários Cristãos. Assume-se esta posição por dois motivos: por um lado, as escolas das missões protestantes estavam ligadas directamente aos países de proveniência dessa determinada denominação, e por outro, devido aos pactos que o governo colonial tinha com a Igreja Católica para educação dos nativos, questão a ser desenvolvida posteriormente. Importa salientar que depois de 1926, a Igreja Católica Apostólica Romana passou a beneficiar-se de subsídios e de posição privilegiada na sua acção evangelística e educacional em relação às outras confissões religiosas. Olhando para este pacto, Castiano e Ngoenha, descrevem que

 

“O estatuto orgânico das missões Católicas portuguesas de África e de Timor-Leste de 13 de Outubro de 1926 (…) consagrou um capítulo às questões educativas, concentrando a missão ‘civilizadora’ só nas missões católicas portuguesas. Isto cria bases legais para que fossem cedidos meios financeiros à Igreja Católica.”[11]

 

Apesar desta realidade, os missionários protestantes (Presbiterianos, Metodistas, Anglicanos, etc.) também foram sempre activos (particularmente nas zonas norte e interior das províncias de Maputo, Gaza e Inhambane) e implantaram várias missões que forneciam educação para os nativos. Olhando para os dois tipos de missões (católicas e protestantes), qual é o significado do acto educativo e o seu valor social para os moçambicanos? Pode o saber oferecido nestas escolas das Missões ter contribuído para o despertar da consciência nacionalista? Que educação colonial serviu de instrumento para emancipação e para a libertação? Para uma melhor abordagem, analisar-se-á em separado as escolas das missões católicas e as escolas das missões protestantes, a sua actuação e a forma como se relacionaram com o governo colonial e com os povos “indígenas”.

 

a)   Educação nas escolas das Missões Católicas em Moçambique

Afirmou-se anteriormente que a Igreja Católica Apostólica Romana e o governo colonial tinham uma relação intrínseca, que faz parte da história de Portugal. Eric Morier-Genoud, especialista em políticas da Igreja Católica em Moçambique e professor de história na Queen's University na Inglaterra, afirma que embora estas relações tenham existido desde a chegada do colonialismo em Moçambique, estes se fortificaram cada vez mais no Séc. XIX. Na perspectiva política, foi depois dos meados do mesmo século que os grandes poderes imperialistas da Europa se interessaram com o continente Africano, facto que fez com que Portugal intensificasse a ocupação das suas colónias. Esta necessidade de ocupação efectiva forçou Portugal a procurar parceiros que pudessem ajudar, e a Igreja Católica Apostólica Romana foi a instituição mais apropriada para este fim. Por isso, “o Estado começou a apoiar as actividades da Igreja”[12] tanto em Portugal assim como nas colónias que fossem ocupadas.

Segundo Jenoud, esta relação continuou suavemente até 1910 quando as relações mudaram devido ao início de um regime republicano anticlerical que impôs uma separação total entre a Igreja Católica e o Estado, tanto em Portugal assim como nas suas colónias.[13] Esta situação afectou directa e indirectamente a vida da Igreja Católica em todas as vertentes, pois, já não tinha o suporte governamental nas suas missões. Com esta crise de relacionamento que perdurou dezasseis anos, a Igreja Católica Apostólica Romana viu-se obrigada a apoiar a entrada de um novo regime militar autoritário que assumiu o poder em 1926, e teve o António de Oliveira Salazar como novo líder.

O novo regime instalado e liderado por Salazar, viu uma necessidade de reforçar a vida da nação, realidade que era quase impossível se dependesse apenas dos recursos localmente produzidos. Foi assim que o regime considerou as colónias como a única solução, e “adoptou o princípio de catolicismo social e defendeu uma cooperação com a Igreja Católica”[14] para que esta pudesse servir de “arma espiritual do Estado”[15] em todos os seus esforços. Desta feita, a Igreja Católica passou a ser vista como o “parceiro ideal para as áreas de educação do africano ‘selvagem’ para que este pudesse melhor servir a Portugal.”[16]

A relação acima descrita desenvolveu-se a ponto de se assinar acordos formais entre a Igreja e o Estado português. Por exemplo, a assinatura da concordata a 7 de Maio de 1940 e o acordo missionário a 5 de Abril do ano seguinte. A concordata era “um documento para regular a situação jurídica da Igreja (Católica) em Portugal, garantir a sua liberdade e salvaguardar os interesses de Portugal.”[17] O acordo missionário é que especifica a missão da Igreja Católica na educação dos indígenas. Segundo Genoud, a concordata de 1940 “significou uma aceitação por parte de Roma (Vaticano) do acordo entre a Igreja e o Estado português.”[18] Com estas relações acordadas, a Igreja passou a ser parte do Estado autoritário português e “desempenhou um papel importante no processo de ocupação colonial, legitimação do regime, educação e portugalização dos povos africanos”[19] a ponto de criar um “genocídio cultural”. Com Salazar no poder, e com a concordata e o acordo missionário, a Igreja Católica foi sempre privilegiada e teve muitas vantagens em todas as suas actividades, incluindo na educação. Por exemplo,

“o Estado deu à Igreja a exclusiva responsabilidade de educação para os africanos, deu terra e apoio financeiro. Mais tarde, o Estado concedeu isenção de impostos, custeou as despesas de viagens do pessoal da instituição eclesiástica, e deu posição privilegiada a toda hierarquia da Igreja Católica.”[20]

 

Antes da independência nacional o processo da criação de uma educação formal em Moçambique desenvolveu no meio destas parcerias entre o Governo Português e a Igreja Católica, e foi um processo lento, caracterizado por uma natureza discriminatória, que dividia o ensino em duas categorias: o ensino indígena destinado para os povos nativos, e o ensino oficial dedicado aos filhos dos portugueses e assimilados. Esta divisão de ensino foi instituída através do Diploma Legislativo N° 238 de 17 de Maio de 1930, o qual deixava claro que o objectivo central da educação do indígena é de “…conduzir gradualmente o indígena da vida selvagem para a vida civilizada, formar-lhe a consciência de cidadão português e prepará-lo para a luta da vida, tornando-o mais útil à sociedade e a si próprio.”[21] Mas, afinal, quem era o indígena? Segundo o 1º artigo da lei do indigenato promulgada em 1917, o indígena é o “individuo de raça negra ou dela descendente que pela sua ilustração e costumes não se distingue do comum daquela raça.”[22]

Segundo a Lei do Indígena, o nativo podia sair desta classe ascendendo para uma nova classe que o atribuía o estatuto de português, mas com o nome de “assimilado”. Mas, para tal, o assimilado era um indivíduo que

 

“(1) abandonou os usos e costumes pretos, (2) que fala, lê, e escreve português, (3) é monógamo e que (4) tenha uma profissão que garanta o seu sustento, podendo apresentar documentos comprovativos, tais como um atestado passado pelo administrador, uma certidão de instrução primária de primeiro grau, uma certidão de casamento civil ou de compromisso futuro para a monogamia.”[23]

 

Na verdade, o moçambicano não tinha uma formação integral porque a educação reservada aos indígenas era limitada apenas em um ensino primário rudimentar, no ensino profissional, bem como no ensino normal, que tinha por finalidade habilitar professores indígenas para as escolas rudimentares.[24] Com esta descrição, fica evidente que havia uma elitização da educação, que poderia estar disponível para os indígenas mediante o processo de conversão em assimilados. Além do mais, o tipo de educação fornecido servia o governo colonial, tanto na vertente política bem como cultural porque preparava os nativos para melhor servir o colonizador e a perpetuar os seus valores culturais em nome da civilização. Este tipo de educação está intrinsecamente ligado às ideologias eurocentristas que ostentavam uma dupla negação. Por um lado, negavam a educabilidade e racionalidade humana a todo o africano, e por outro, rejeitava qualquer identidade cultural dos povos nativos, os indígenas.

Uma análise profunda destas ideologias eurocentristas revela que há duas figuras filosóficas, Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Immanuel Kant, que merecem uma atenção especial para melhor percepção da sua génese e desenvolvimento, especialmente porque olhavam para os africanos como sub-humanos. Hegel em sua obra Lições Sobre a Filosofia da História Universal, mostra que os africanos não são educáveis, e afirma que:

 

“A África não tem interesse histórico próprio, é um local em que os homens vivem na barbárie e no selvagismo, sem se ministrar nenhum ingrediente da civilização. Por mais que retrocedamos a história, acharemos que a África está sempre encerrada no contacto com o resto do mundo, está fechada em si mesma, os africanos são crianças eternas, envoltos na negrura da noite sem a luz da história consciente. A África é até hoje desconhecida e não mantém nenhuma relação com a Europa. De todos estes rasgos, resulta que a característica do negro é ser indomável, sua situação não é suscetível de desenvolvimento e educação, de hoje para sempre, não tem a moralidade, as mais terríveis manifestações da natureza humana estão presentes no africano.”[25]

 

A citação acima mostra que nessa altura a Europa tinha uma percepção específica da história, que fez com que se relegasse a pessoa negra para o mundo irracional, que não é educável simplesmente por não ter capacidade racional como os europeus.

Uma outra figura emblemática no campo da ética e da filosofia de educação é Immanuel Kant, que desenvolveu um pensamento coerente sobre a teoria de conhecimento e uma filosofia de educação que afirma que “o homem é o único ser que precisa de educação”[26] para que se torne um ser humano pleno, e “o homem não pode se tornar um verdadeiro homem se não pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz”[27] porque é na educação onde o homem é disciplinado a tornar-se culto.

Analisando a perspectiva kantiana, pode-se inferir que, primeiro, o ser humano é dotado de faculdades mentais que o permitem adquirir conhecimento, que são a sensibilidade e o entendimento. Segundo, este ser humano é a única criatura que precisa de educação.[28] Como se afirmou antes, na sua teoria de conhecimento, Kant distingue entre a faculdade receptiva da sensibilidade, através do qual temos intuição, e a faculdade activa do entendimento, que é a fonte dos conceitos.[29] Em outras palavras, o ser humano tem faculdades que o permitem adquirir conhecimento, e é o ser que precisa de educação para que se torne um homem pleno.

Ora, em Kant o processo educativo visa o desenvolvimento das capacidades do homem, razão pela qual a educação individual e o desenvolvimento da sociedade são vistas concomitantemente e com uma relação de reciprocidade. Esse desenvolvimento pressupõe um movimento de sair de um certo estado inferior para um estado superior, de um estado de “menoridade” que “é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direcção de outro indivíduo”[30] para o estado de maioridade, que é tomado como o próprio esclarecimento e capacidade de fazer o uso do seu entendimento. A educação cria condições para que haja o desenvolvimento do indivíduo e da sociedade, onde a pessoa ou sociedade se tornam autónomos e esclarecidos. Em Kant, a autonomia, o esclarecimento e a emancipação são uma conquista reservada para as pessoas que se sujeitam ao processo educativo, que deve ser iniciado desde a tenra idade e continua no decorrer da vida.

Porém, ao ler na obra de Kant A ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita, o autor deixa patente que a Europa poderá dar lei ao resto da humanidade. Com essa ideia percebe-se, não apenas o orgulho (europeu), mas também frustrações de outras raças que estão percebendo que na linguagem de Kant afirma-se que apenas a raça branca contém todos os impulsos e talentos.[31] Isto é uma proclamação da superioridade racial dos europeus em relação às outras raças e a inferioridade racial que reduz o negro para menoridade. Embora Kant tenha afirmado que “o homem não pode se tornar um verdadeiro homem se não pela educação”,[32] a sua teoria racial coloca o africano e toda raça negra em uma posição inferior equiparada à posição animalesca e selvagem, que mesmo se for sujeito à educação não alcançaria posição que se possa equiparar à perfeição dos europeus. Posto isto, pode-se inferir que, quando a sua teoria do conhecimento afirma que o ser humano é dotado de faculdades mentais que o permitem adquirir conhecimento (a sensibilidade e o entendimento), não inclui o homem africano, mas sim faculdades reservadas apenas para o ser humano europeu.

Neste sentido, a educação kantiana é aquela que cria condições para que haja o desenvolvimento do indivíduo e da sociedade, onde a pessoa ou sociedade se tornam autónomas, esclarecidas e emancipadas. Mas, este não foi o caso da educação que era dada aos indígenas no tempo colonial, justamente porque se acreditava que estes não eram educáveis e não tinham capacidade de aprimorar a ciência porque esta é uma habilidade reservada aos europeus. Em outras palavras, não se podia dar uma educação que pudesse emancipar o africano porque este não estava dotado de faculdades mentais (a sensibilidade e o entendimento) que o permitem adquirir conhecimento.

São estas ideologias que moldaram a visão colonial e neocolonial, que estavam carregados de um “saber científico” de cunho racista, e que serviram de fundamento para subjugação dos povos “selvagens”, dai a invenção das políticas que não permitiam a evolução escolar aos povos indígenas. Tanto a Igreja (cristã), bem como o estado colonial português, herdaram e fizeram uso destas ideologias que prejudicaram sobremaneira o moçambicano nativo, o indígena. Como se afirmara antes, o estado português incumbiu à Igreja a responsabilidade de educar o africano selvagem para melhor servir o seu mestre – o colonizador. O objectivo desta educação não era criar condições para que o educando pudesse alcançar uma verdadeira autonomia, esclarecimento e emancipação, mas ser educado para servitude. O tipo de educação dada aos nativos era uma mutilação ou genocídio cultural porque ensinava as pessoas a ignorarem as suas identidades culturais a favor da cultura portuguesa através de um processo de assimilação.

 

b)   As Missões Educacionais Protestantes Em Moçambique

Após a análise do tipo de educação que a Igreja Católica oferecia aos indígenas notou-se que, com Salazar no poder, com a concordata e o acordo missionário, a Igreja Católica foi dada a exclusiva responsabilidade de educação dos Africanos e teve todo tipo de apoio financeiro para o cumprimento desta missão. Este tipo de apoio e privilégio não foi dado às outras confissões religiosas cristãs de caris protestantes, nem as outras religiões que já existiam na nação. Perante este diapasão, é importante analisar a atitudes do governo colonial em relação às demais Igrejas (não católicas), e a formas como estas sobreviveram no meio destas políticas vigentes, que regulavam inclusive ensino que as missões destas denominações proporcionavam.

Quase todos os especialistas que estudam a história da educação em Moçambique tendem a concordar que, em muitos casos, o governo português era hostil às Igrejas Protestantes de uma feição informal, mas muito profunda. Como notou Veiga e Fonseca, “…nem sempre os conflitos se mostram com clara evidência […] eles podem estar nas pequenas estratégias cotidianas, nas diversas apropriações de valores, saberes e poderes.”[33] Apesar desta unanimidade na identificação deste problema da relação hostil entre o estado colonial (que compactuava com a Igreja católica) e as outras instituições religiosas de caris protestantes, os especialistas divergem na identificação da génese e das razões desta hostilidade.

Por um lado, temos uma linha que é seguida por Teresa da Cruz e Silva, Professora na Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique, no seu livro Protestant Churches and the Formation of Political Consciousness in Southern Mozambique (1930-1974), escreve a história da Missão Suíça sob a égide do poder colonial português, e explora o papel da Igreja (Ex-Missão Suíça) na educação das elites nacionalistas. Silva descreve o contexto da oposição católica e portuguesa contra o protestantismo, tomando como base o desenvolvimento das escolas da Missão Suíça e a gradual africanização e indigenização de todas as instituições ligadas a esta missão. No pensamento da Silva[34] uma das origens da relação hostil deve-se à teoria da africanização adoptada pelos protestantes, que não foi bem vista pelo regime político que estava preocupado com a portugalização através da educação gerida pela Igreja Católica.

Este pensamento acima referenciado é bem patente no seu artigo com o título, “Eduardo Mondlane: Pontos para uma periodização da trajectória de um nacionalista”, no qual ela nota que a educação oferecida pelo governo colonial através das missões católicas tinha uma segregação que “não apenas negava o acesso à educação aos nativos, mas também criou regras que proibissem aos moçambicanos qualquer possibilidade de alcançar os níveis mais elevados da educação.”[35] Segundo esta especialista, do ponto de vista metodológico, enquanto a Igreja Católica Romana trabalhava de mãos dadas com o governo no processo de portugalização dos povos nativos, as confissões religiosas protestantes tinham uma táctica diferente. Usando a linguagem de Helgesson, muitos missionários tinham planos de “enraizar a Igreja e Educação com mais firmeza em Moçambique, indigenizando-as”,[36] transformando a missão estrangeira em uma Igreja local.

Por outro lado, Severino Ngoenha[37] apresenta argumentos mais profundos que refutam completamente o pensamento de Silva. Embora Ngoenha reconheça que como o Governo Português queria ser fiel à concordata e acordo missionário de 1940 e 1941 respectivamente, sentiu-se na obrigação de criar legislação que restringisse a operação de Igrejas Protestantes em Moçambique, este pacto não pode ser visto como ponto de partida para se afirmar que o estado colonial português estava a defender as missões católicas em detrimento das missões protestantes. Para Ngoenha “o governo português não era necessariamente católico. Se ele suscita, subvenciona e defende as missões católicas é só porque elas podem ajudá-los a atingir os objetivos coloniais a que ele se fixara.”[38] Portanto para Ngoenha é falacioso “pensar que o governo colonial favorece a priori qualquer confissão religiosa. Ele defende simplesmente o poder colonial português e só na medida em que certas missões e certo tipo de missiologia podem favorecer a colonização é que esta favorecia.”[39]

Com esta análise, fica evidente que a concordata e o acordo missionário não devem ser vistos como ponto de partida para esta relação, mas sim um meio através do qual o governo português poderia materializar o seu plano colonizador. Assim sendo, qual seria a génese desta hostilidade entre o governo colonial português e as missões educativas de carácter protestante? A resposta é simples, Ngoenha rebate, citando o diário de notícias de 19 de Fevereiro de 1881, que “o documento da fundação da junta geral das missões afirma que ‘a Itália, França, a Alemanha e a Inglaterra protegem e desenvolvem activamente as Missões como um factor de civilização e de influência política.”[40]

Segundo Ngoenha, fica claro que o estado português desenvolveu estas relações hostis com as Missões cristãs protestantes por questões políticas, uma vez que muitas destas Missões eram oriundas de países que eram concorrentes no processo de colonização de África, descartando assim a ideia de que estes eram hostilizados por causa do seu método de africanização e indigenização, avançada por Helgesson e Silva.

Independentemente da génese desta hostilidade, o importante é notar que segundo Ngoenha, primeiro, o governo colonial recorreu à Igreja católica como braço no processo da colonização, e esta hegemonia católica fez com que houvesse uma relação intrínseca entre evangelização e educação. Segundo, o sistema educativo fornecido pela educação colonial-missionária estava a desfavor dos nativos e não respondia aos imperativos internos de moçambicanos, mas a imperativos de luta colonial vindos do exterior – de criar e ter certeza da dominação colonial do moçambicano.[41]

Portanto, mesmo as medidas que as Missões católicas (que eram também portuguesas) tomaram nas suas relações com o indígena, estavam alinhadas com o processo de colonização/dominação, a Igreja (Católica) apenas fez o uso para a expansão eclesiástica, que também favorecia o colonizador. Por exemplo, já se disse que a educação indígena estava sob responsabilidade da Igreja Católica, e por isso, passou a ser imperativo que os alunos fossem baptizados (ao catolicismo) como condição para que passassem no chamado exame do ensino rudimentar. A Igreja Católica sempre usou esse método para converter pessoas ao catolicismo, misturando-se assim a fé e o sistema de educação. Além disso, como os exames dos indígenas eram conduzidos e controlados por padres Católicos, a Igreja Católica tinha o controlo do desenvolvimento social e económico de qualquer comunidade nativa.

Tomando em consideração o pensamento de Ngoenha, é óbvio que as Missões protestantes e católicas eram ambos “colonialismos” e as relações hostis que existiram eram apenas de conflitos entre os “colonialismos”.[42] As Missões católicas apenas ganharam espaço porque as outras confissões religiosas protestantes estavam ligadas às outras potências concorrentes no processo de colonização. Em outras palavras, nenhuma destas Missões tinha o objectivo de fornecer uma educação que pudesse libertar ou emancipar os moçambicanos porque tinham laços políticos com os países das suas origens, que eram também colonizadores em África. Mesmo os países que não tinham colónias, as suas missões estavam carregadas destas ideologias eurocentristas muito bem representadas por Kant e Hegel. Portanto, se os protestantes tomaram medidas ‘suaves’ na sua relação com o “indígena” é porque estavam cientes do maior adversário e da sua hegemonia, a Igreja católica. Que fique claro que nenhuma educação das missões tinha pretensão de libertar/emancipar o indígena como afirmam alguns especialistas de educação moçambicana.

Assim, corroboramos com a análise feita por Ngoenha, de poder trazer esta nova leitura dos factos. Como diz Le Goff, fundamentado em Certeau, “há uma historicidade da história que implica o movimento que liga uma prática interpretativa a uma práxis social.”[43] Ngoenha foi capaz de perceber que a génese das relações hostis no período colonial era de carácter político, e que todas as escolas das Missões eram partes integrantes do processo da colonização. Em outras palavras, Ngoenha foi capaz de fazer crítica dos factos históricos apresentados por Silva, e trouxe à tona realidades que muitos historiadores da educação moçambicana negligenciavam. Isto está alinhado com a afirmação de Le Goff, de que “a crítica da noção de facto histórico tem, além disso, provocado o reconhecimento de ‘realidades’ históricas negligenciadas por muito tempo pelos historiadores.”[44]

Posto isto, uma questão que pode se levantar perante este posicionamento é, se nem o ensino oficial nem os das missões cristãs contribuiu para o despertar da consciência nacionalista, como se moldou a ideia da emancipação entre os primeiros nacionalistas? Esta questão não pode ser respondida de forma fácil, mas do ponto de vista de educação pode se recorrer ao pensamento de Walter Benjamin, exposto no seu ensaio com o título “Programa de um teatro infantil proletário” (1928). Neste texto, o autor torna claro que a educação como processo formativo não é propriedade privada da Pedagogia, mas pode ser compreendida como um fenômeno que se realiza no sujeito, ou seja, como caminhada do ser em um processo infindável. Aqui nota-se que Benjamim articula de forma eloquente a relação entre a experiência e educação, no qual olha para a pessoa como um ser rodeado de questões culturais, sociais e históricas de seu tempo, que proporcionam experiências educativas. Usando a linguagem própria de Benjamin, “a criança proletária nasce dentro de sua classe. [...] desde o início, ela é um elemento dessa prole, e aquilo que ela deve tornar-se não é determinado por nenhuma meta educacional doutrinária, mas sim pela situação de classe.”[45]

Tomando como base este pensamento de Benjamin, pode se inferir que as ideias e consciência emancipatória não despertaram como resultado do processo pedagógico que ocorria nas escolas formais (oficiais e das missões), mas sim de uma educação informal que despertou na colectividade, sob influência de todos os elementos socioculturais, económicos e políticos que o povo moçambicano vivenciou. São as experiências e vivências que proporcionaram um tipo de educação que impeliu os moçambicanos a tomarem a iniciativa de irem a busca da sua liberdade, que começa a se efectivar com a independência de 1975.

 

3.   A Educação “Confessional” depois da Independência em 1975

Tendo se afirmado que no tempo colonial a educação pouco ou nada fez para a emancipação do nativo, todas as escolas das missões (protestantes e Católicas) bem como as escolas oficiais, a sua educação era guiada por ideologias eurocentristas e colonizadoras. A seguir vai se analisar o papel das escolas das missões depois da independência, onde a ideologia imperialista e eurocentrista supostamente não deveria vigorar. Que relação existiu entre as missões cristãs e o Estado? Que elementos historiográficos merecem atenção nesta nova era? Para responder a estas questões, recorre-se às políticas adoptadas pelo Estado e à relação que teve com as organizações que vinham apostando na área de educação.

 

3.1 Os Desafios Da Formação Do Homem Novo

O advento da independência trouxe mudanças na área da educação porque a política adoptada na altura apresentava uma mensagem que desencorajava a expressão religiosa ou qualquer ligação com instituições religiosas. Esta ideologia ficou expressa no III Congresso da FRELIMO, no qual à educação é dada um papel preponderante na formação de uma personalidade socialista, e a transformação da frente de libertação para ser um partido e única força que determina os destinos educacionais do povo moçambicano.

Esta postura política não durou muito tempo. Nos finais de 1982, a Direcção do Partido Frelimo, teve uma reunião com os representantes das principais confissões religiosas em Moçambique com o objectivo de estabelecer laços que pudessem servir de reforço da unidade entre os moçambicanos, independentemente do respectivo credo religioso. Este encontro marcou um momento de viragem nas relações entre o estado e as instituições religiosas porque é nesta reunião em que se abandonava, em nome da unidade nacional e do "amor à pátria", a postura anti-religiosa radical característica dos anos anteriores. Portanto, a partir de 1982 começam a soprar ventos de esperança para o reconhecimento das instituições religiosas como uma força popular que poderia contribuir para o desenvolvimento desta nação, recentemente, “emancipada”.

No geral, o contexto histórico de Moçambique independente determinou o tipo de educação que a nação precisava. Embora a primeira constituição, depois da independência, concede e reconhece a necessidade da liberdade religiosa e direitos iguais a todas as religiões legalmente constituídas/registradas, na prática o período pós-independência foi caracterizado por uma espécie de “competição e eventualmente conflitos entre o Estado e as confissões religiosas”[46] porque o novo governo queria controlar todos os sistemas de formação social de massas populares.

Segundo relatos históricos, o processo de libertação iniciou com homens que tinham uma ligação directa ou indirecta com as igrejas cristãs, e isso dava o domínio da realidade e do papel que o Cristianismo desempenhou ao longo da história. Segundo Genoud, “muitos nacionalistas vinham de famílias religiosas ou eram crentes activos. Alguns tiveram uma experiência da igreja e da religião quando foram para escola porque toda a educação estava nas mãos da igreja católica ou instituições protestantes.”[47] Portanto, muitos tinham sentido os efeitos da política educativa do tempo colonial e a forma como esta tratou os povos nativos. Como se mencionou anteriormente, a educação colonial Missionária nunca teve intenção de criar condições para a emancipação como alguns pensam, todas as escolas das Missões (protestantes e católicas) estavam carregadas de mentalidade colonial dependendo da origem de cada missão, e uma visão eurocentrista que considerava o africano inapto para uma verdadeira educação que pudesse emancipá-lo.

Dada a conjuntura do tempo colonial e o tipo de educação que foi dada aos indígenas, depois da independência foi quase impossível condenar a política colonial sem tocar nas escolas das missões, uma vez que estes também tinham um punho colonial. Em segundo lugar, a agenda do novo governo de Moçambique independente centrava-se na criação de um Estado de unidade nacional. Assim, as “divisões étnicas, culturais e religiosas foram vistas como obstáculos neste processo obrigatório da unificação nacional.”[48] A pluralidade e diversidade religiosa não foi vista como uma oportunidade que pudesse enriquecer os esforços da criação desta nova nação. Pelo contrário, a diversidade e a pluralidade religiosa foram vistas como um potencial para divisionismo, daí a ideia de eliminar a religião e substituí-la por uma única ideologia – o socialismo comunista.

Com estes dois elementos, a nação devia encontrar novas formas de viver e moldar a identidade do povo da nação recentemente independente, mas que não tivesse nenhuma ligação com confissões religiosas porque estas tinham uma ligação com os países colonizadores e eurocentristas nas suas origens. Foi nesta base que o Moçambique independente adoptou as ideologias marxistas e comunistas, que entraram em choque com os ideais religiosos que prevaleceram até a independência. Como escreve Genoud,

 

“com o tempo a posição oficial da Frelimo em relação à fé e religião começou a mudar. Militares treinados na Argélia e Tanzânia regressaram ao país com influência do marxismo, e a hostilidade para a religião e instituições religiosas ganhou mais espaço.”[49]

 

Devido a política descrita, não é possível falar da educação confessional neste período porque toda propriedade converteu-se a favor do Estado em um processo de nacionalizações, no qual “um mês depois da independência, a Frelimo declarou a nacionalização imediata de todas as escolas e instituições de saúde que estavam na posse das Igrejas.”[50] No campo da educação, todas as escolas confessionais foram revertidas a favor do Estado, as escolas das missões (protestantes e Católicas) foram usadas como centros de transmissão da nova ideologia.

Enquanto, por um lado, o Estado efectivava o processo de conversão de propriedade a favor do Estado, iniciou concomitantemente a organização de uma nova forma de gerir a educação dos moçambicanos independentes – o Sistema nacional de educação. Neste período, todas as escolas oficiais, as escolas das missões católicas e protestantes estavam nas mãos do Estado, unidos com um único objectivo – a formação do homem novo, livre das ideologias coloniais. Destarte, pode-se afirmar sem relutância que o advento da independência e as ideologias novas trouxeram desafios que imperavam mudanças compulsivas. Por exemplo, do ponto de vista curricular e dos manuais, a mudança devia ser imediata porque ambos já não se ajustavam a nova realidade.

Castiano e Ngoenha notam isto com muita tristeza ao dizer que: “os manuais são ultrapassados em termos de conteúdos. Estes reflectem a realidade portuguesa, particularmente os livros respeitantes as disciplinas de Geografia, História e Português.”[51] Era imperioso que se desenvolvesse conteúdos curriculares que refletisse a nova realidade, que respeitasse os anseios deste povo que recentemente se tornou independente. Com esta atitude do novo Governo, pode se inferir que o novo Governo da Frelimo estava alinhado com o pensamento e visão de Ngoenha de que a educação colonial-missionária sempre teve laços com os colonizadores, e nunca esteve ao serviço do povo africano, daí a necessidade de substituí-las por um único tipo de educação gerido pelo Estado e sem nenhuma interferência de organizações religiosas, justamente porque estas tinham ideologias eurocentristas e ligação com os países colonizadores.

Com o advento da nova política económica no Estado moçambicano, no qual se promulgou a nova lei educacional (Lei 6/92 de 06 de Maio de 1992) que permitia a participação de entidades privadas no processo da formação do povo moçambicano – (alínea b) do artigo 1), as instituições religiosas voltam a intervir na área da educação. Porém, a realidade já era diferente porque, além das escolas públicas existentes, as escolas de carácter confessional concorrem com as outras entidades privadas no processo educativo.

Antes desta lei, quando se falasse de educação confessional em Moçambique, referia-se apenas as escolas primárias e secundárias, muitas delas fundadas no tempo colonial, na era da educação colonial-missionária. Mas, depois desta lei várias organizações desdobraram-se em criar novas escolas e universidades, as confissões religiosas recuperam as suas antigas instituições que tinham sido nacionalizadas, e aumentaram novas instituições incluindo universidades. Porém este reinício da educação confessional carrega consigo uma nova identidade condicionada pela nova realidade político-histórica. Por um lado, as instituições religiosas não têm financiamento para o pleno funcionamento das mesmas, por outro lado, o governo está aberto a estabelecer parcerias para expandir o acesso à educação. Por isso, as escolas confessionais actualmente são estruturadas de duas maneiras: algumas funcionam como se fossem escolas privadas, outras como escolas comunitárias. As primeiras dependem inteiramente das contribuições dos estudantes, enquanto nas últimas o Estado disponibiliza professores e a escola cobra um valor simbólico proveniente dos alunos para questões administrativas. Perante esta nova realidade, a educação confessional depara-se com o problema que afecta várias escolas privadas, o de garantir uma educação de qualidade como direito sem cair na ratoeira da mercantilização do ensino.

 

4.   Conclusão e considerações finais

Pode-se aferir que na história da educação em Moçambique houve três fases muitos notáveis. Na primeira, em que havia uma educação colonial missionária, que pouco fez para emancipação dos povos nativos porque todas as escolas das Missões tinham ideologias eurocentristas e estavam intrinsecamente ligadas aos interesses dos colonizadores. No geral, as escolas das missões no tempo colonial eram manifestações de vários colonialismos em um território que estava sob controle do governo português, que por sua vez tinha pacto com a Igreja Católica. Foi uma fase que não tinha projecto formativo emancipatório, mas uma educação básica para melhor servir os interesses do colonizador.

Quanto a segunda fase, podemos dizer que não havia nenhuma educação confessional porque nenhuma confissão religiosa era permitida dar o seu contributo na educação. Todavia, pode-se afirmar que a filosofia de educação adoptada facilmente pode ser considerada uma filosofia de “praxis”, que considera a reforma social como um projecto educacional que requer uma pedagogia que faz com que as pessoas reflitam proactivamente sobre os vários determinantes das suas condições, impelindo-os na busca de mudança social como actores conscientes dentro da sua história. Entretanto, o erro que levou ao fracasso foi a exclusão e inexistência de parcerias estratégicas que pudessem contribuir nesse esforço.

É na terceira fase onde se pode dizer que a educação confessional ressurgiu, mas em uma situação de competitividade com as escolas privadas e públicas na formação do povo moçambicano. É nesta terceira fase que a educação confessional e todas as escolas das missões tem uma oportunidade de contribuir verdadeiramente na missão educativa, na formação do moçambicano que pode trilhar rumo a uma verdadeira emancipação. Portanto, na historiografia de educação moçambicana em nenhuma das fases podemos ter evidência de que as escolas ligadas a instituições religiosas contribuíram para emancipação dos povos. Se algo foi feito, ainda precisa de ser desvendado e estudado profundamente, pois os documentos existentes deixam muitas lacunas. Por isso, este é um campo que ainda deve ser explorado exaustivamente.

 

Referências

Benjamin, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984.

Castiano, José. P. e Severino E. Ngoenha. A longa marcha duma “Educação para todos” em Moçambique. Maputo: Edição Publifix, 2013.

Cruz e Silva, Teresa. Protestant Churches and the Formation of Political Consciousness in Southern Mozambique (1930-1974). Basel: P. Schlettwein Publishing, 2001.

Cruz e Silva, Teresa e Alexandrino José. “Eduardo Mondlane: Pontos para uma periodização da trajetória de um nacionalista (1940-1961)”. Estudos Moçambicanos nro. 9 (1991).

Diploma Legislativo Nº 238 de 17 de Maio de 1930. Boletim Oficial de Moçambique nro. 20.

Fonseca, Thaís Nívia de Lima e. “História da educação e história cultural”. Em Historia e historiografia da educação no Brasil. Eds. Cynthia Greive Veiga e Thaís Nívia de Lima e Fonseca. Belo Horizonte: Autentica, 2003.

Hegel, Georg W. F. The Philosophy of History. Nova Iorque: Dover Publications, 1956.

Helgesson, Alf. Church, State and The people in Mozambique: An Historical Study with Special Emphasis on Methodist Development in the Inhambane Region. Uppsala: International Tryck AB, 1994.

Kant, Immanuel. Ideia de uma História Universal com um propósito cosmopolita. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1990.

Kant, Immanuel. Sobre a pedagogia. Tradução de Francisco Cock Fontanella. 2ª ed. Piracicaba: Editora UNIMEP, 1999.

Kant, Immanuel. Resposta à pergunta: que é esclarecimento? Textos seletos. Tradução de Floriano de Sousa Fernandes. 3 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2005.

Kant, Immanuel. Sobre a pedagogia. Tradução de Francisco Fontanela, 5ª ed. revisada. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2006.

Le Goff, Jacques. “História”. Em História e Memória. Ed. Jacques Le Goff. 5ª ed. Campinas: UNICAMP, 2003.

Magalhães, Justino. “Contributo para a historia das instituições – entre memórias e o arquivo”. Em Para a História do ensino liceal em Portugal. Actas dos Colóquios do I congresso da reforma de Jaime Moniz (1884-1895). Eds. Rogerio Fernandes e Justino Magalhães. Braga: Secção de História da Educação da Sociedade Portuguesa de Ciências de Educação, 1999.

Mondlane, Eduardo. Lutar por Moçambique. 1ª ed. portuguesa. Maputo: Livraria Sá da Costa Editora, 1975.

Morier-Genoud, Eric. “Of God and Ceasar: The Relationship between Christian Churches and the State in Colonial Mozambique, 1974-1981”. Le Fait Missionnaire, Cahier nro. 3 (Setembro 1996).

Ngoenha, Severino E. Estatuto E exiologia da educação: O paradigmático questionamento da missão suíça. Maputo; Livraria Universitária, 2000.

República de Moçambique. Lei 6/92. Maputo, I Série nro. 19, Maio de 1992.

Strawson, Peter. F. The Bounds of Sense: an Essay on Kant’s Critique of Pure Reason. Londres: Routledge, 1966.

Veiga, Cynthia Greive e Thaís Nívia de Lima e Fonseca (eds.). Historia e historiografia da educação no Brasil. Belo Horizonte: Autentica, 2003.



[1] Jacques Le Goff, “História”, em História e Memória. Ed. Jacques Le Goff (Campinas: UNICAMP, 2003).

[2] Le Goff, “História”, 15.

[3] Teresa Cruz e Silva, Protestant Churches and the Formation of Political Consciousness in Southern Mozambique (1930-1974) (Basel: P. Schlettwein Publishing, 2001).

[4] Alf Helgesson, Church, State and The people in Mozambique: An Historical Study with Special Emphasis on Methodist Development in the Inhambane Region (Uppsala: International Tryck AB, 1994).

[5] Eric Morier-Genoud, “Of God and Ceasar: The Relationship between Christian Churches and the State in Colonial Mozambique, 1974-1981”, Le Fait Missionnaire, Cahier nro. 3 (Setembro 1996).

[6] Severino E. Ngoenha, Estatuto E exiologia da educação: O paradigmático questionamento da missão suíça (Maputo; Livraria Universitária, 2000).

[7] José. P. Castiano e Severino E. Ngoenha, A longa marcha duma “Educação para todos” em Moçambique (Maputo: Edição Publifix, 2013).

 

[8] Le Goff, “História”, 8.

[9] Justino Magalhães, “Contributo para a historia das instituições - entre memórias e o arquivo”, em Para a História do ensino liceal em Portugal. Actas dos Colóquios do I congresso da reforma de Jaime Moniz (1884-1895), eds. Rogerio Fernandes e Justino Magalhães (Braga: Secção de História da Educação da Sociedade Portuguesa de Ciências de Educação, 1999), 64.

[10] Magalhães, “Contributo para a historia das instituições”, 64.

[11] Castiano e Ngoenha, A longa marcha, 26.

[12] Morier-Genoud, “Of God and Ceasar”, 5.

[13] Morier-Genoud, “Of God and Ceasar”, 6.

[14] Morier-Genoud, “Of God and Ceasar”, 6.

[15] Helgesson, Church, State and The people in Mozambique, 230.

[16] Helgesson, Church, State and The people in Mozambique, 224.

[17] Castiano e Ngoenha, A longa marcha, 36.

[18] Morier-Genoud, “Of God and Ceasar”, 6.

[19] Morier-Genoud, “Of God and Ceasar”, 6.

[20] Morier-Genoud, “Of God and Ceasar”, 6-7.

[21] Castiano e Ngoenha, A longa marcha, 29.

[22] Castiano e Ngoenha, A longa marcha, 29.

[23] Castiano e Ngoenha, A longa marcha, 29.

[24] Castiano e Ngoenha, A longa marcha.

[25] Georg W. F Hegel, The Philosophy of History (Nova Iorque: Dover Publications, 1956), 9.

[26] Immanuel Kant, Sobre a pedagogía, tradução de Francisco Cock Fontanella, 2ª ed. (Piracicaba: Editora UNIMEP, 1999), 11.

[27] Immanuel Kant, Sobre a pedagogia, tradução de Francisco Fontanela, 5ª ed. revisada (Piracicaba: Editora UNIMEP, 2006), 15.

[28] Kant, Sobre a pedagogía, 2ª ed., 11.

[29] Peter F. Strawson, The Bounds of Sense: an Essay on Kant’s Critique of Pure Reason (Londres: Routledge, 1966), 20.

[30] Immanuel Kant, Resposta à pergunta: que é esclarecimento? Textos seletos, tradução de Floriano de Sousa Fernandes, 3 ed. (Petrópolis: Editora Vozes, 2005), 63.

[31] Immanuel Kant, Ideia de uma História Universal com um propósito cosmopolita, tradução de Artur Morão (Lisboa: Edições 70, 1990), 29.

[32] Kant, Sobre a pedagogia, 5ª ed. Revisada, 15.

[33] Cynthia Greive Veiga e Thaís Nívia de Lima e Fonseca (eds.), Historia e historiografia da educação no Brasil (Belo Horizonte: Autentica, 2003), 63.

[34] Silva, Protestant Churches.

[35] Teresa Cruz e Silva e Alexandrino José, “Eduardo Mondlane: Pontos para uma periodização da trajetória de um nacionalista (1940-1961)”, Estudos Moçambicanos nro. 9 (1991), 85.

[36] Silva em Helgesson, Church, State and The people in Mozambique, 34.

[37] Ngoenha, Estatuto E exiologia da educação.

[38] Ngoenha, Estatuto E exiologia da educação, 64.

[39] Ngoenha, Estatuto E exiologia da educação, 65.

[40] Ngoenha, Estatuto E exiologia da educação, 64.

[41] Ngoenha, Estatuto E exiologia da educação, 77.

[42] Ngoenha, Estatuto E exiologia da educação, 126-130.

[43] Le Goff, “História”, 19.

[44] Le Goff, “História”, 7.

[45] Walter Benjamin, Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação (São Paulo: Summus, 1984), 90.

[46] Morier-Genoud, “Of God and Ceasar”, 1.

[47] Morier-Genoud, “Of God and Ceasar”, 14.

[48] Helgesson, Church, State and The people in Mozambique, 2.

[49] Morier-Genoud, “Of God and Ceasar”, 20.

[50] Morier-Genoud, “Of God and Ceasar”, 25.

[51] Castiano e Ngoenha, A longa marcha, 54.